O ciclo da vida é um processo interessante. Embora compartilhamos de experiências tão distintas, de alguma forma, há um meio que nos conecta em conflitos semelhantes na existência. Tal como ser inevitável, a perda se mostra uma fase muitas vezes arrasadora, ou até simplória, em nossa vivência. Seja como for, lidar com este fato carrega um elemento decisivo de despedida daquilo que nos afeiçoamos. Com produção iniciada pelos Irmãos Russos em 2018, o terror australiano Relic (2020) fez sua estreia calorosa no Sundance Film Festival em janeiro deste ano, se destacando pela famigerada trama sobre o desfalecimento.
Se juntando às grandes mulheres que ascendem no terror psicológico, a cineasta Natalie Erika James com certeza conquistou um lugar promissor neste seu debute em longa-metragem, após quatro curtas pontuados no currículo. Trazendo um leque feminino, adentramos a película quando Kay (Emily Mortimer) e sua filha Sam (Bella Heathcote) precisam retornar à antiga casa da matriarca Edna (Robyn Nevin), por conta do seu repentino desaparecimento, motivado pela demência. Porém, elas passam a perceber que existe algo a influenciando, diante de estranhos comportamentos além da clara doença.
Como um bom horror psicológico que se preze, Relic realça sua excelente regência através da atmosfera tensa e inquieta que salta desde os primeiros minutos, o que já sinaliza o ótimo equilíbrio da direção ao oferecer tais impressões de maneira introdutória, em conjunto da ambientação e fotografia frias. Somando a isso, o tom melancólico se une rapidamente ao mistério imposto pela figura de Edna, do mesmo jeito, se entrelaça a sensação de inutilidade que rodeiam Kay e Sam, que tentam, dos seus modos, compensar o estado crítico da progenitora. Assim, bem mais do que os simbolismos propostos para distribuir as camadas metafóricas à sua temática, o longa passa a funcionar quando drama e terror conversam para estabelecer o elo da premissa.
É curioso como o texto assume exemplos simples para caracterizar a dicotomia da doença de Edna, e ao mesmo tempo, se provam suficientes ao conseguir vestir o sofrimento e os efeitos inferidos neste trio. Para a matriarca, as manifestações de confusão, desespero e instabilidade, como quando um momento agradável de dança que se converteu ao súbito espanto de ver um objeto que estimava não estar mais no seu controle como recordava. E outra amostra, nos episódios que tenta manter o que mais se importa, vivo, nem que seja enterrando ou “devorando”.
E nesse passo, nós — ou Sam e Kay — contemplamos os impactos de driblar a situação com o que acreditam ser melhor, admitindo os riscos de fazer algo a respeito. Desta forma, Relic vai se apropriando mais da ambientação e da desconcertante situação para abraçar a alegórica trama do inevitável. Do que escorre por nossas mãos sem podermos mais deter, ainda que seja valioso, uma relíquia. Em algum ponto, nos damos conta que já estamos sujeitos a tal percurso entre o viver e sucumbir.
Quando então a direção define seu triunfo, é um caminho sem volta para o terror. A coesão dos itens dispostos para denotar sua proposta, agarram um ritmo sufocante e angustiante exaltando o último personagem desse cenário: a casa. Moendo de vez (de dentro para fora) o que o desenvolvimento dramático atribuiu a trama, no seu ato final, Relic sela seu conceito com exatidão. Sintetizando os membros dessa metáfora, o fim da linha induz a um passeio desconfortável e apavorante, representando o terror da mente humana em seu estado de vulnerabilidade depois de se perder, pontuando um caótico, amargo e belo desfecho do que começou.
O que dá uma baita virada para um longa que somava fatores usuais, costurando sua premissa num compasso lento, e que se sustentava muito bem só com os contrastes tensos sobrepostos nas personagens, indicando que um ápice modesto surgiria dali.
Ainda é cedo para se afirmar, mas Relic tem a força necessária de marcar 2020 como um dos principais e mais memoráveis títulos do gênero. É ele quem vai ser comparado a outros prestigiados do horror psicológico, ou que vai ser tido como chato por não entregar peças óbvias ao contar sua história, e também, por se isentar de elementos em prol do susto fácil. Garantindo o que propõe, Erika James é sucinta e sagaz ao conduzir a obra com equilíbrio e apelo magistral desse receptáculo do terror.
Ama ouvir músicas, e especialmente, não cansa de ouvir Unkle Bob. Por mais que critique, é sempre atraído por filmes de terror massacrados. Sua capacidade de assistir a tanto conteúdo aleatório surpreende a ele mesmo, e ainda que tenha a procrastinação sempre por perto, talvez escrevendo seja o seu momento que mais se arrisca.