Uma das reações mais interessantes que o ser humano apresenta está relacionada ao medo. Como resposta a um estímulo oposto físico ou mental, dele pode se desencadear o ataque de pânico, ansiedade, fobias, mas também se mostra positivo ao injetar uma dose de cautela, levando o indivíduo a trabalhar a introspecção, o controle emocional. Dentre os medos incomuns, há o que inevitavelmente compartilhamos: o da morte. Qual deve ser a forma mais dolorosa? Qual a menos? E para onde vamos quando morrermos? Essa última questão, Upload (2020 -), nova série da Amazon Prime Video se dispôs a “responder”, ao trazer em sua premissa uma realidade em que o produto mais consumido é o serviço que permite um paraíso ao morto. Pronto para essa empreitada?
Criada por Greg Daniels, uma das mentes por trás de Parks & Recreation (2009 – 2020), a atração se passa no ano de 2033, dominado pelo melhor que a internet poderia oferecer com autonomia. Um dos avanços mais falados é o Upload, serviço que permite o usuário fazer uploaded (carregamento) de suas memórias ao sistema, e viver em um paraíso virtual, enquanto permite aos entes queridos, o poder de visitar em VR (realidade virtual). A trama decola ao trazer o desenvolvedor Nathan Brown (Robbie Amell), namorador e desleixado, receber um choque após se envolver em um acidente de carro suspeito, o que conduz sua transferência para Lakeview, o lar doce lar do Upload.
Não tem jeito: se o medo de morrer não é suficiente, a nossa mente logo começa a questionar para onde vamos. Há quem diga que o inferno já é aqui, e seja qual for o lugar posterior, será sinônimo de descanso, uma vez que será melhor do que conviver com os conflitos diários que experimentamos. Acreditar nisso garante até um conforto quando consideramos a possibilidade de um lugar melhor com base em nossas ações. Bem, essa projeção The Good Place (2016 – 2020) foi responsável por nos dar o gostinho de como seria o universo compensador da vez que devolvemos o troco equivocado no caixa do supermercado, por exemplo. A questão de Upload envolve um meio mais direto quando se trata para onde alguém quer ir, e o triunfo da produção foi expandir para além de um mero espaço de regalia pós-morte.
É curioso como a criatividade de Greg Daniels moldou a realidade da sociedade futurística em reflexo do Upload. Voltado para o gênero de comédia, a série poderia simplesmente se ater a mistura da linguagem com a ficção científica, mas o show mostra querer ser bem mais do que um atrativo cômico em Lakeview ao tecer críticas ao capitalismo e levantar discussões acerca de relacionamentos e trocas. Como o serviço de maior índice de qualidade e no que pode oferecer ao cliente, o Upload se torna o canalizador de debates morais e de direitos humanos: a possibilidade de ter a mente em nuvem, usufruindo de lazer pontua como o capitalismo ainda dita as diretrizes de quem vai ou não comer o melhor da fatia, revelando de maneira cortante e inteligente a desigualdade social, e o retrato que fica para quem depende de preços acessíveis e da gratuidade para ter acesso.
Como o que vende o Upload é a oportunidade ao cliente de ainda ter contato com amigos, parentes, cônjuge, o programa traça a importância de nos relacionarmos e que mesmo a VR dando a chance de simular muitas coisas, a tecnologia não é capaz de satisfazer o contato físico, a troca, o laço mútuo constante que partilhamos. Aliás, a possibilidade de experimentarmos muito de quando éramos vivo é tentadora, mas não o suficiente para suprir a necessidade física, o que conseguimos manter e criar. Em tempos de quarentena, ter esse vislumbre é belo para valorizarmos mais a transferência, a energia na presença de pessoas, além do que uma bolha virtual possibilita.
Na comédia, a série começou como uma carência forçada de causar humor com piadas fúteis e momentos precoces, mas ao explorar o gênero em paralelo ao universo tecnológico em que a trama é centrada, terminou ganhando pontos pela personalidade e maneira mais genuína de compor sequências cômicas com o leque de personagens. De longe, contar com Aleesha (Zainab Johnson) e Dylan (Rhys Slack) para esse feito foi uma escolha acertada. Sobre a realidade futurística, o show não decepcionou em brincar com as possibilidades e criatividade para caracterizar o conceito, se mostrando um deleite conhecer a ideia do “como seria se” — um preservativo que concede consentimento antes do sexo, por exemplo.
Apesar dos acertos, o arco do protagonista é super genérico — a coisa da pessoa escrota que aprende a melhorar depois de passar por uma experiência difícil e inesperada, tendo de rever a conduta de outrora e desvendar o mistério por trás de sua morte —, e ainda assim, prova que a série não almeja reinventar a roda para entreter e ser relevante, contudo, é um desenho de pouco futuro para se esperar no programa. Já renovada para segunda temporada, será maravilhoso ver o que Greg está propondo para o novo ano perante o desfecho da season finale, podendo explorar e ser mais ousada na abordagem, uma vez que aparenta ter uma ideia do que dialogar, mas deixa a leve impressão de estar na introdução dos rascunhos, transitando parcialmente sem adentrar de fato a algo desafiador. Que venha o update.
Ama ouvir músicas, e especialmente, não cansa de ouvir Unkle Bob. Por mais que critique, é sempre atraído por filmes de terror massacrados. Sua capacidade de assistir a tanto conteúdo aleatório surpreende a ele mesmo, e ainda que tenha a procrastinação sempre por perto, talvez escrevendo seja o seu momento que mais se arrisca.