Quem é o seu super-herói favorito? Num mundo pós MCU, a quantidade de pessoas que responde essa pergunta com “Batman” sem sequer fazer o bom e velho questionamento de “Marvel ou DC” primeiro ainda é surpreendentemente alta. Batman é um dos personagens mais populares da DC de todos os tempos, tendo ganhado vida para além dos quadrinhos em mais 90 obras diferentes, desde séries de TV – animação e live action – a games e grandes produções cinematográficas. E embora o cavaleiro das trevas tenha sido transportado para jogos de videogame já desde os anos 80, foi a série Arkham que, a partir de 2009, trouxe para o mundo dos games a versão mais elegante e sombria do cavaleiro das trevas até agora.
Batman: Arkham Asylum (2009) abre a série, introduzindo um Batman maduro e cauteloso, que acompanha pessoalmente o processo de aprisionamento de Joker por achar que seu maior inimigo se deixou capturar de propósito. O formato fechado e relativamente linear do jogo, com personagens sendo introduzidos um de cada vez e cada um com um objetivo específico na história, faz um excelente trabalho apresentando não apenas o herói e seus inimigos, mas o próprio universo no qual a série inteira vai existir. A mecânica e a narrativa do jogo remetem muito ao Batman dos quadrinhos, desde a possibilidade de se pendurar de cabeça pra baixo e abduzir inimigos pra dentro das sombras aos planos e motivações cartunescos dos vilões e o próprio desfecho da história, em que Batman derrota os inimigos e tudo volta ao normal, com o nosso herói voando de volta pra Gotham para impedir mais um crime.
Arkham City (2011) dá continuidade ao legado de Batman com uma jogabilidade perfeita e a narrativa mais fascinante de toda a série, trazendo pontos extremamente relevantes para o desenvolvimento do herói, como: o constante conflito de combater o crime sem se tornar parte dele, o risco de ter sua verdadeira identidade revelada e o que isso representa para seus aliados, a realidade de que é impossível salvar todo mundo, a perda de pessoas importantes e a perspectiva de que a era do Batman pode estar chegando ao fim. O final de Arkham City é icônico e supera todas as expectativas, e abre caminho para uma sequência excelente.
No meio tempo entre Arkham City e sua sequência, porém, o prequel Arkham Origins (2013) veio para bagunçar um pouco o coreto. Sem ser necessariamente um jogo ruim, Origins trouxe uma qualidade técnica extremamente subpar, pouquíssima inovação em termos de gameplay e um plot fraco e repetitivo que fez uso de praticamente todos os clichês disponíveis dentro do universo de Batman – e não de um jeito positivo. Arkham Origins conseguiu dar uma esfriada na hype dos fãs, e quando Batman: Arkham Knight (2015) finalmente saiu, muita gente não estava exatamente empolgada pelo jogo. Felizmente, a Rocksteady redimiu com louvor as falhas passadas da Warner.
O pontapé inicial de Arkham Knight é bem despretensioso, embora fantasticamente executado: em primeira pessoa, o jogador segue os passos de um policial de Gotham entrando em um restaurante em pleno Halloween, onde ele eventualmente se torna vítima do novo gás do medo do Espantalho. Com a ameaça de ter o gás espalhado por toda parte, Gotham é evacuada, e só quem sobra nas ruas são os criminosos envolvidos com o estado de sítio em que a cidade se encontra, seus capangas, e uma exército de mercenários comandado pela misteriosa figura do Cavaleiro de Arkham. Quando falamos de Batman, nada disso parece particularmente novo ou complicado, certo? Apenas mais uma noite em Gotham. Mas experienciar a alucinação causada pelo gás do medo em primeira pessoa é um jeito excelente de preparar o terreno para o que vem pela frente.
Mas vamos por partes.
Do ponto de vista técnico, Arkham Knight se sobressai onde Origins falhou, construindo em cima do que havia sido introduzido nos jogos anteriores para uma experiência de jogo mais intensa e atualizada sem se desviar do estilo original da série que é provavelmente seu maior atrativo. O combate segue fluido e dinâmico, consistente com os jogos anteriores, mas com o acréscimo de alguns combos novos – especialmente no formato de Dual Play, em que você pode alternar entre o Batman e um personagem de apoio – e equipamentos que podem ser utilizados para criar uma vantagem, como um sintetizador de voz para dar comando falsos e guiar os inimigos diretamente para as armadilhas.
Por outro lado, a introdução do Batmóvel no jogo exigiu naturalmente uma repaginação não só das mecânicas de jogo, que precisaram ser adaptadas para ação mais intensa, mas da própria Gotham, levando o jogador a partes da cidade não exploradas antes, com construções mais limpas e elegantes contrastando diretamente com a familiar decadência sombria escondida sob a superfície, que é marca registrada do universo de Batman. Mas, interessante como seja, essa novidade tem seus custos.
Por mais incrivelmente empolgante que seja a perspectiva de pilotar o Batmóvel pela cidade, a verdade é que o carro é extremamente complicado de controlar no modo de perseguição e o jogador precisa se conformar com a realidade de colidir com postes, colunas, outros carros e ocasionalmente uma parede ou outra até pegar o jeito. Felizmente, para um veículo que é basicamente um tanque de guerra, a maioria dos obstáculos é meramente uma inconveniência temporária.
Além disso, na busca de explorar esse novo aspecto do jogo ao máximo, acabamos tendo muitas missões focadas no carro, ao ponto de ser possível dividir o jogo em dois: o Arkham Knight propriamente dito, e uma versão gótica e brutal de Mario Kart – especialmente ao longo da linha de história do Charada -, que apesar de divertida, acaba ficando um pouco desconectada do contexto do jogo.
No mais, com um gameplay mais voltado para ação, alguns aspectos interessantes dos outros jogos acabaram sendo negligenciados: o modo de investigação fez uma aparição breve em algumas missões principais e na série de side quests do Professor Pyg, mas não foi tão relevante ou interessante quanto nos jogos anteriores, e por causa do foco dado ao combate direto, o jogo teve bem menos oportunidades para stealth. O storytelling também enfrenta suas dificuldades, sendo bastante previsível em muitos aspectos, e mesmo as reviravoltas da história tem mais impacto psicológico do que narrativo. Peculiaridades a parte, a jogabilidade como um todo ainda é muito boa, e seus pequenos lapsos não distraem do ponto forte do jogo, que é a intensa jornada psicológica do cavaleiro das trevas.
Antes de mergulhar no enredo de Arkham Knight, é importante pensar sobre o que torna o Batman um personagem tão amado. Dizer que o personagem é realista por ser um herói sem superpoderes é um descuido: a habilidade especial de Batman é a quantidade irreal de dinheiro que ele tem, e quanto desse dinheiro ele é capaz de direcionar para seu aprimoramento físico pessoal e para o desenvolvimento científico e tecnológico que torna suas empreitadas como vigilante possíveis. Não tem nada realista nisso. O que torna Batman um herói possível e perfeitamente relacionável é sua origem e as motivações que o impulsionam.
Antes de ser o temido guardião de Gotham, Batman foi Bruce Wayne, uma criança que presenciou um evento violento e extremamente traumático que mudou sua vida pra sempre, que sofreu com a culpa da sobrevivência, a desesperança causada pelo luto, o sentimento de injustiça e impotência e um medo constante de tudo. O corpo humano lida com medo se preparando para ou fugir ou lutar, e existe um limite para quanto medo somos capazes de suportar antes de sermos permanentemente afetados por ele. E é assim que, com sua força de vontade inabalável, treinando seu corpo e mente para escolher lutar todas as vezes, Bruce Wayne se torna um jovem progressivamente frustrado com a percepção de que, em uma cidade corrupta e tomada pelo crime, ninguém está se ocupando em proteger os inocentes; e eventualmente um adulto cansado de esperar e pronto para tomar uma atitude.
Embora a promessa de justiça feita por Bruce Wayne seja a motivação oficial do personagem, a verdade é que a vida de combate ao crime de Batman é uma reação automática ao medo constante dos resultados que ele não pode controlar: medo de falhar, de reviver as emoções negativas causadas pela morte de seus pais, de assistir outras pessoas passando pelo mesmo sofrimento e não ser capaz de ajudar, de perder alguém importante novamente, de perder o controle de sua raiva e frustração e acabar se tornando aquilo que ele incessantemente combate. Ele se arma com equipamentos especializados, tecnologia de ponta, conhecimento e informação e se esforça ao ponto de exaustão pra evitar aquilo que é tecnicamente inevitável, se punindo imediatamente por qualquer resultado menos que o ideal.
Batman sofre de uma ansiedade paralisante, e de alguma forma conseguiu transformar isso em um de seus pontos fortes, e se essa não é a imagem moderna de realização pessoal, eu não sei o que mais no mundo poderia ser.
Nesse contexto, Arkham Knight trabalha arduamente para desconstruir o Cavaleiro das Trevas. Afetado pelo gás do medo e contaminado com o sangue de Joker – resultado dos eventos de Arkham City -, Batman passa a ser assombrado por alucinações constantes do próprio Joker, que não perde a oportunidade de apontar suas falhas, erros do passado, do presente e do futuro, constantemente tentando convencer o personagem a parar de resistir e se deixar dominar pelo veneno que corre em suas veias e sucumbir à loucura. Outras alucinações envolvem o tiro que incapacitou Barbara Gordon, a tradicional visita ao Beco do Crime e a morte de Jason Todd – em uma sequência longa, detalhada e dolorosa de cutscenes -, e apesar de se manter estóico durante todo o processo, essa última alucinação faz com que Batman confunda Tim Drake com Jason por um momento, e é de partir o coração.
Além das alucinações, os aliados de Batman são todos sistematicamente capturados ou atacados de alguma forma, da Mulher Gato ao Lucius Fox, enviando o cavaleiro das trevas em várias missões ao redor da cidade na intenção de libertá-los. Metade desses eventos são parte de missões secundárias, e o jogador não necessariamente tem que lidar com eles, mas assistir os membros da bat-família sendo removidos da história um a um – especialmente quando Barbara é exposta ao gás do medo e é possível ouvir a dor na voz do herói – e alguns dos parceiros mais leais de Batman se voltando contra ele em raiva e desapontamento cria um efeito de isolamento muito forte e reforça ainda mais esse processo de desconstrução pelo qual o personagem passa.
E como se tudo isso não bastasse, temos ainda a figura do Cavaleiro de Arkham. O jogo oferece dicas suficientes pra deduzir a verdadeira identidade do personagem, mas sua revelação como Jason Todd, quando finalmente acontece, não deixa de ser impactante. Da cicatriz em J em sua bochecha – um presente de Joker – ao tremor quase choroso em sua voz ao confrontar Batman, Jason é a realização em carne e osso de todos os medos e dúvidas do herói. Esse é um dos momentos de maior emoção no jogo, e existe algo profundamente triste tanto no modo como Batman perde a compostura e praticamente implora para Jason parar de lutar, como no conflito visível enfrentado por Jason quando chega a hora de exercer sua vingança.
Nesse ponto fica claro que a transformação de Jason Todd em Cavaleiro de Arkham é a inspiração para a estratégia de ataque de Espantalho. Obcecado em assistir enquanto o herói é atormentado, dominado e destruído por seus medos, o vilão concede pequenas vitórias e falsas esperanças momentos antes de atacar um ponto fraco diferente, expondo todas as falhas na fachada do personagem e evidenciando sua insuficiência como guardião. O plano é bem sucedido, de certa forma: ao fim da noite, Batman está cansado e isolado o suficiente que, quando Tim e o comissário Gordon são capturados, ele aceita se render.
A grande virada, nesse ponto da história, não acontece com o personagem se livrando de suas amarras e escapando de Espantalho, mas sim com uma última demonstração de heroísmo puro antes do fim: abrindo mão de sua identidade como Batman, Bruce Wayne, no auge de sua vulnerabilidade, aceita experimentar a essência do próprio medo.
Afinal, sacrifício é o centro da própria natureza do herói.
Mas depois de uma noite de conflito e reviravoltas, só resta um medo a ser enfrentado: se tornar seu maior inimigo. É aqui que o plano de Espantalho começa a ruir: ao ser injetado com uma grande quantidade de toxina do medo, Batman sai do controle e Joker toma as rédeas da situação, e medo é um conceito muito vago para o príncipe palhaço do crime. Em Arkham Origins, no que foi provavelmente o ponto alto do jogo inteiro – juntamente com a atuação memorável de Troy Baker -, é possível vislumbrar uma pequena fração do funcionamento da mente de Joker e o impacto que a existência de Batman causa nele: para o vilão, os dois são reflexos um do outro, invertidos e um pouco distorcidos, mas feitos do mesmo tipo de loucura. O fato de que existe alguém como Batman policiando as ruas de Gotham dá a Joker uma nova motivação, e um personagem que tinha pouco interesse em qualquer coisa que não fosse o caos absoluto se torna imediatamente focado em testar os limites da determinação de Batman e descobrir quanto tempo ele aguenta ficar se equilibrando na tênue linha entre o bem e o mal antes de inevitavelmente – na percepção de Joker – cair em desgraça.
Arkham Knight, por sua vez, trás uma perspectiva oposta: dentro da cabeça de Batman, Joker não é seu reflexo, mas a imagem que poderia ter acontecido com ele se, ao invés de resistir e ao trauma, luto e medo, ele tivesse se deixado consumir. Por mais dicotômica que essa percepção seja, nós estamos falando aqui da mentalidade de um homem que transformou suas fraquezas em uma armadura à prova de balas; qualquer coisa que enfraqueça sua convicção é uma ameaça a seu objetivo de vida, e é extremamente natural que ele procure dividir tudo em preto e branco – por mais irônico que isso seja, considerando seu modo de ação.
Assim, a visão de absoluto terror de Batman é uma em que Joker toma o controle de suas ações, mata seus aliados e inimigos a sangue frio e ateia fogo em Gotham.
Mas a maior reviravolta do jogo inteiro ainda é a descoberta de que Joker também sente medo: não da morte necessariamente, mas de ser esquecido, e principalmente, de ser esquecido pelo Batman. “Eu preciso de você”, diz Joker, ao mesmo tempo que percebe que o contrário não é verdade.
O momento de triunfo que se segue mostra nosso herói, que enfrentou seus maiores medos e sobreviveu, superando os efeitos da toxina do medo e em seguida oferecendo a Espantalho uma dose de seu próprio veneno. O desfecho é inspirador e impactante, e cria um sentimento de conquista que, pessoalmente, transcende o jogo. Mas esse não é o final da história.
O final real – que exige uma força de vontade digna do próprio Batman pra destravar, pois requer que você complete TODAS as sidequests dos mais procurados de Gotham (isso mesmo, as do Charada também) – mostra Batman, agora com sua identidade exposta, aterrissando na entrada da mansão Wayne e sendo recebido por Alfred na porta, momentos antes de tudo ir pelos ares. Gordon faz um pequeno discurso sobre o fim da jornada do Batman e sobre a incerteza de seu legado, e a cena corta para uma família sendo abordada no Beco do Crime, numa reconstituição perfeita da história de origem do nosso herói, mas dessa vez, a tragédia é evitada por uma fantasmagórica figura encapuzada.
Nos cinco anos desde seu lançamento, esse final foi motivo de muita especulação sobre o futuro do personagem e da série: o Batman realmente morreu? Quem assumiu seu manto? E se ele sobreviveu, como você esconde um bilionário famoso debaixo do nariz de sua cidade natal sem levantar suspeitas? Teremos uma continuação? A verdade é que, além de boatos, não existem respostas concretas para essas perguntas. O que nós sabemos é que, nas palavras do comissário Gordon, e originalmente do próprio Batman: “Os criminosos são covarde e supersticiosos; o único jeito de vencê-los é se tornar algo que seja capaz de levar terror aos seus corações”, e poucas coisas no mundo podem soar tão aterrorizantes quanto a perspectiva de um herói que volta dos mortos para continuar sua missão de justiça brutal.
VEJA TAMBÉM
Os 10 anos de O Cavaleiro das Trevas
Unicórnia, escritora, wannabe de roteirista e fangirl profissional, se alimenta de livros, filmes, games, animes, seriados, fanfics e cupcakes. É ocasionalmente vista chorando enquanto assiste animes de esporte, assombrando livrarias e eventos geek pela cidade, contando histórias de terror em salas escuras ou falando com gatos na rua. Os gatos normalmente respondem.