O Dia das Mães foi há poucos dias e, em meio a tantas declarações lindas e poéticas para essas pessoas incríveis, nos esquecemos de que nem todas são tão incríveis. De um modo geral nenhuma relação familiar é perfeita, muitas pessoas se afastam, outras brigam, mas e se você tivesse uma relação abusiva com sua mãe? Uma relação tão abusiva que ela em busca de proteger você contra o mundo submetesse você á uma vida confinada em uma cadeira de rodas e repleta de cirurgias que você não precisava fazer?
Em junho de 2015, (mais) um assassinato chocou os Estados Unidos. Clauddine “Dee Dee” Blanchard, mãe modelo de uma criança doente, foi encontrada esfaqueada em sua casa após estranhas mensagens terem sido postadas em sua página no Facebook, e sua filha Gypsy Rose, uma jovem que sofria dentre outras doenças terríveis de asma, leucemia e paraplegia, havia desaparecido. É a história desse crime que The Act (2019 -) conta em sua primeira temporada. Tudo que eu falei até agora está nos primeiros minutos do primeiro episódio. Infelizmente é um pouco difícil falar sobre a série sem deixar escapar nenhum spoiler, mesmo que muitos talvez conheçam o caso que ficou bastante famoso, fica aqui o aviso, mas vou me esforçar.
No primeiro episódio conhecemos nossas protagonistas, Gypsy (Joey King) e Dee Dee (Patricia Arquette) chegando a sua nova casa em Springfiel, Missouri, depois de ficarem desabrigadas pelo furacão Katrina. As duas são unidas e vivem uma pela outra por conta das várias doenças de Gypsy que, mesmo sendo uma pré-adolescente, age como uma criança, e que tomam todo o tempo da mãe, que não pode trabalhar e depende de dinheiro doado para bancar os diversos procedimentos médicos da garota e suas despesas. A casa nova, inclusive, é oferecida por um projeto que ajuda famílias desabrigadas, casa esta que com o passar dos episódios mais parece uma gaiola cor de rosa.
Ao final do primeiro episódio, descobrimos que Gypsy não precisa de sua cadeira de rodas, ela é perfeitamente capaz de andar e junto com ela temos a revelação de que uma de suas alergias é falsa, uma mentira de sua mãe. Então surge a pergunta: o que mais é mentira?
A resposta é dada ao longo dos oito episódios e não é nem um pouco fácil de engolir.
Durante a temporada acompanhamos as descobertas de Gypsy com relação a si mesma e como a relação abusiva que tem com a mãe vai se intensificando conforme ela tenta se libertar, conflito muito bem representado pelo uso da cadeira de rodas, estar em pé é estar livre e ficar na cadeira é viver sob o comando de Dee Dee. Os sentimentos conflituosos se intensificam, assim como o sofrimento e a agonia de quem assiste. Muitos momentos doem no espectador, como doem nas personagens, especialmente quando vai chegando a certeza para Gypsy de que ela não pode ser livre se sua mãe estiver viva.
A direção trabalha bem com a fotografia e a trilha sonora, ajudando a intensificar as emoções de cada cena do melhor modo e valorizando a atuação das protagonistas que estão incríveis em seus papéis, elas incorporaram as personagens, se tornaram elas de um modo que até assusta assistir as filmagens verdadeiras e compará-las, não à toa Arquette ganhou um globo de ouro pelo papel. E Calum Worthy como Nick completa a tríade dos personagens mais importantes, entregando também uma performance muito boa que o torna quase irreconhecível para quem o conheceu nas séries que fez parte no Disney Channel.
A história real é adaptada com muito cuidado, mesmo com o aviso ao final de cada episódio de que os eventos são ficcionalizados (já que algumas pessoas são um pouco exigentes quando se tratam de adaptações, ainda mais da vida real), acaba sendo muito fiel a tudo que aconteceu e aos eventos principais, até mesmo eventos que não se sabe exatamente como aconteceram eles conseguem deixar de um modo ambíguo, que contempla as duas versões do ocorrido.
Além da construção de personagens, elas são reais, são complexas, o modo como Dee Dee definha com o tempo, ironicamente não se preocupando com a própria saúde enquanto se preocupa demais com a da filha e Gypsy continua crescendo e se desenvolvendo, ultrapassando limites para conseguir sua liberdade. Mas em minha opinião o grande destaque é a ambientação, tanto os cenários quanto a caracterização dos personagens é impecável, comparando com fotos das pessoas e ambientes reais, chega a ser assustadora a semelhança, como se tivessem realmente ido ao local do crime para gravar. Joey King parece crescer mesmo durante os episódios, não apenas na atuação, mas fisicamente também.
Nada é simples em The Act, ninguém é bom ou mal. Dee Dee muito provavelmente sofria de síndrome de Münchhausen por procuração, uma situação que faz a pessoa provocar sintomas de doenças em outra pessoa, e por isso fez o que fez com a filha, além de ter crescido em situações complicadas. Gypsy não é um anjo, ela aprendeu como mentir e manipular junto com a mãe, mas acaba que essas armas são as que ela tem para tentar fugir de seus abusos, ela cresceu em um lar distorcido e foi difícil para ela ver que a vida não era um filme de princesas da Disney. E Nick também não é puramente mau, não é simplesmente um louco, ele precisava de ajuda, acompanhamento psicológico, mas foi negligenciado pela família.
O conflito, amar a mãe e ao mesmo tempo não poder viver mais com ela, querê-la viva e morta ao mesmo tempo, o que leva ao assassinato, são muito bem representados, mesmo com os abusos, não é fácil, a dominação transcende o corpo e se apodera da mente.
Para mim, talvez a série peque apenas em não mostrar como elas realmente fizeram muito com dinheiro doado e com outros projetos de caridade, as várias viagens a Disney que foram feitas e a relação de Dee Dee com os vizinhos, na vida real ela era isolada, mas também mantinha boas relações com todos. Entendo a série não ter explorado esse lado, mas em certo momento parece estranho ninguém questionar as duas pararem até de usar a própria varanda.
Para quem quiser saber mais sobre o caso real, o texto de Michelle Dean, jornalista que é produtora da série, para o BuzzFeed que ajudou a popularizar o caso está disponível tanto em inglês quanto traduzido para o português, além do documentário da HBO, Mamãe Morta e Querida (Mommy Dead and Dearest, 2017) sobre o caso, indico para ser visto depois de ver a série assim como fiz, serve até mesmo de epílogo para a história.
Bacharel em Cinema e Audiovisual, roteirista, escritora, animadora, otaku, potterhead e parte de muitos outros fandoms. Tem mais livros do que pode guardar e entre seus amigos é a louca das animações, da dublagem e da Turma da Mônica. Também produz conteúdo para o seu canal Milady Sara e para o Cultura da Ação TV.