“Eu sou uma casa. Está escuro dentro de mim. Minha consciência é uma luz solitária. Uma vela ao vento. Todo o resto vive nas sombras, mas ainda estão lá. Os outros quartos, nichos, corredores, escadas e portas. E tudo que vive e vaga dentro de você está aqui. Vivo. Dentro da Casa, que sou eu. ” – S. Freud
Freud (2020 -) é uma produção austríaca, original da Netflix, que conta com oito episódios, com cerca de cinquenta minutos cada. Os episódios trazem à tona uma aventura ficcional, com o mais famoso nome da psicanalise, o médico Sigmund Freud. Mas ainda no princípio de sua carreira e desenvolvimento de suas teorias, além da utilização da hipnose.
A criação é de Marvin Kren, Benjamin Hessler e Stefan Brunner. Além disso, ele conta com Robert Finster, Ella Rumpf, Georg Friedrich, Brigitte Kren, entre outros em seu elenco. A trama se passa na Viena do ano de 1886. E o jovem médico se une à um policial, Alfred Kiss (Georg Friedrich) e uma médium chamada Fleur Salomé (Ella Rumpf) para resolução de um crime, que acaba por se revelar uma grande conspiração criminosa na cidade. A ficção é coberta por um suspense psicológico, e que tenta mostrar através das experiências perturbadoras de Freud, como ele dá sustentação aos seus métodos e teorias.
Para os fãs de séries como Penny Dreadful (2014 – 2016), segue um prato cheio do mesmo estilo. O conteúdo é bem denso, com uma fotografia escura e com umas cenas bem pesadas, principalmente durantes os sonhos e os transes dos personagens. Outro fato que nos traz uma memória visual, é que a personagem Fleur Salomé interpretada pela atriz suíça, Ella Rumpf, sofre de um transtorno dissociativo, onde sua segunda personalidade “Taltos”, um tipo de demônio da superstição húngara a atormenta e a domina por muitas vezes, nos fazendo recordar de Vanessa Yvis (Eva Green, em Penny Dreadful), que também é atormentada por entidades demoníacas (porém com uma origem mais focada no universo místico). Somado também ao figurino e na narrativa da história, que se assemelham em grandes pontos.
As questões que circundam o personagem Freud nessa ficção, durante o processo de fortalecimento de suas técnicas, consideradas hoje como alicerce da psicanalise, são expostos para o expectador de formas distintas, mesmo que para os personagens as mesmas questões se mesclem de certo modo, como por exemplo: Terapia ou tortura; Misticismo ou Ciência; Vingança ou Justiça. Um simples exemplo que podemos perceber a primeira vista é a retratação de uma realidade vivenciada pela grande maioria da população com doenças mentais, principalmente nos meados dos anos de 1886.
Em geral, vemos que o núcleo de pacientes internadas e sob ‘terapias’ super agressivas, são em grande maioria mulheres, e que invariavelmente são diagnosticadas com “histeria”, uma denominação genérica para todo tipo de desordem física com fundo emocional em mulheres, e que surgia, supostamente, no útero. Inclusive, a palavra vem de origem grega ὑστέρα, “útero”. O termo histeria foi utilizado por Hipócrates, que pensava que a causa da histeria fosse um movimento irregular de sangue do útero para o cérebro. Hoje, o termo está obsoleto.
E para os amantes de história, a série coloca em panorama questões superinteressantes sobre o império Austro-Húngaro, focados nos personagens do Victor e Sofia, que instalam-se na parte Austríaca deste império, todavia, seus desejos mais profundos de liberdade para Hungria, são proclamados durante o decorrer dos episódios.
A língua original da série é o alemão, e os episódios foram batizados com termos relevantes na psicologia, como se estivéssemos a acompanhar um diário do próprio Freud. Entretanto, volto a reforçar que não se trata de um documentário biográfico ou algo similar. Podemos dizer que muitos fatos realmente constam na literatura conhecida sobre o personagem, como a amizade com o, também médico, Josef Breuer, o forte consumo de cocaína (que na época era usada como estimulante), e até mesmo o aparecimento da paciente mais famosa nos registos de Freud e Breuer, a senhora Ana O. Mas, tudo isso serve apenas para alimentar o poder da aventura ficcional orquestrada pela série.
Para os amantes de curiosidades extras, seguem abaixo deliciosas informações que certamente são consideradas spoilers. Então antes de prosseguirmos, fica aqui a indicação de série para se aventurar pelos mistérios da ‘casa’ escura que somos e o que podemos encontrar dentro dela. Se é que queremos.
Fato 1: No folclore húngaro a figura do Taltos não é realmente um demônio, mas sim uma pessoa com habilidades de um feiticeiro. Para o povo húngaro, um sinal de que a criança possa ter nascido como um Taltos seria quando ela nascia com uma alguma mudança física ou dentes extras. Um Taltos, ainda segundo a mitologia, aparece sempre diante de grandes crises e tem o poder de se comunicar com todos os húngaros mentalmente. A personagem Fleur, aparentemente pode ter tido o que a psicologia considera como ‘supressão’ de uma memória traumática na sua infância, induzida pela condessa para que ela conseguisse lidar com a realidade e seguir em frente. Sendo a personalidade Taltos, algo implantado em sua mente e não místico. Assim como Freud faz com o personagem Kiss, que após assassinar prisioneiros a queima-roupa por ordem de seu superior, desenvolveu um problema físico e sendo necessário para sua melhora a supressão e sugestão de uma nova memória para lidar com isso.
Fato 2: A Hipnose é quase tão protagonista quanto o próprio Freud na série. Os condes Húngaros, por exemplo, manipulam Fleur e outros personagens para realizarem atos violentos ou ter visões, o que até certo ponto pode ser considerado possível, visto que aquelas pessoas escolhidas possuem algo que normaliza essa conduta violenta ou mística. Porém, devido aos nossos mecanismos de defesa, cometer crimes ou atos violentos, ou até mesmo se deixar sofrer algo similar, automaticamente elimina o transe sugerido por hipnose. A ficção cria uma espécie de justificativa, para que possamos compreender o motivo do afastamento de Freud dessa técnica, e o novo começo da busca do subconsciente através da escuta livre dos pacientes e anotações em caráter de análise.
Fato 3: Em um de seus transes hipnóticos, dentre diferentes visões, Freud assassina seu pai e mantem-se em uma postura sexual com sua mãe, revelando a associação do complexo de édipo. Termo criado por ele mesmo no campo da psicanalise, mais a frente. Esse mesmo tipo de complexo é notado em outras produções como em Bates Motel (2013 – 2017), e Psicose (Psycho, 1960), filme do qual a série se origina, onde a relação entre Norman Bates e sua mãe evidência essa questão sob uma ótica perturbadora. Porém, fora da ficção, esse complexo, segundo Freud, indica que somos movidos pela nossa libido e pela busca de saciar esses desejos, e como nossas mães, durante nosso nascimento e crescimento, são as nossas primeiras fontes de alimento, afeto e outras necessidades, para os meninos (1 fase da infância) essa relação de mãe e filho pode se confundir, ao ponto de o filho ter ciúmes e querer afastar/eliminar o pai. Por isso, não se aconselha reforçar ou considerar fofo esse comportamento.
Pisciana, web-jornalista, filósofa, social media, editora, aspirante à mochileira, dramaturga, maquiadora de efeitos especiais e viciada em fazer monografias. Sabe fazer malabares com objetos, mas joga bem melhor com as palavras. Detesta vestir roupa, filmes redublados e não pode comer abacaxi, mas adoraria.