Séries de comédias com famílias no centro da trama são bastante comuns no mundo do entretenimento, muitas fizeram sucesso ao longo dos anos como: Modern Family (2009 – 2020), The Goldbergs (2013 -), Good Luck Charlie (2010 – 2014), Last Man Standing (2011 -). Esta maioria normalmente é centrada em famílias brancas e de classe média vivendo peripécias familiares abraçando certos estereótipos. É claro que existem comédias para outros nichos e públicos, por exemplo, aquelas direcionadas para o público negro também são bastante populares também, temos: Um Maluco no Pedaço (The Fresh Prince of Bel-Air, 1990 – 1996), Eu, A Patroa e as Crianças (My Wife and Kids, 2001 – 2005), Todo Mundo Odeia o Chris (Everybody Hates Chris, 2005 – 2009), essas três inclusive bastante populares no Brasil devido as exaustivas reprises em canais abertos, e existem outras mais recentes como Black-ish (2014 -), aclamada pela crítica e pelo público que acompanha as peripécias de uma família negra bem sucedida que tenta balancear seu novo modo de vida, enquanto tenta preservar suas raízes pretas sem cair nos estereótipos do gênero.
A série citada por último foi criada por Kenya Barris, que se tornou um dos roteiristas e showrunners mais bem sucedidos dos EUA nesta era atual, contando ainda com mais duas séries spin off (derivada) de Black-ish, que são Grown-ish (2018 -) e Mixed-ish (2019 -). Estou dando toda essa base para vocês, porque Barris fechou um acordo milionário com a Netflix para fazer conteúdo nesta linha de comédia voltada para o público negro, a primeira série a surgir desse acordo foi #BlackAF (2020 -), comédia sobre uma família negra rica que acompanha um casal tentando criar seus seis filhos enquanto tentam preservar suas origens negras.
A premissa parece muito familiar, não é? É porque é, #BlackAF é praticamente uma releitura de Black-ish com um toque de Modern Family e ecos de The Office (2005 – 2013). A comédia criada por Kenya Barris e produzida por Rashida Jones não esconde suas inspirações e por isso soa tão familiar, inclusive na forma de abordar questões raciais relevantes. Semelhanças a parte, o mais importante aqui é saber se vale a pena assistir a comédia e minha missão é exatamente explanar os pontos altos e os pontos baixos, além de dar um veredito.
Confesso que comecei a assistir #BlackAF desconfiado e o piloto da série não ajuda muito nesse processo, tanto que fiquei me questionando se valeria a pena continuar a assistir. O episódio Because of Slavery”(1×01) introduz bem o formato que é basicamente um documentário em forma de seriado, tudo pelo ponto de vista de Drea Barris (Ima Benson), uma das filhas mais velhas de Kenya, que filma e narra parte do episódio funcionando como um estudo de comportamento da própria família que vai ser usado para que ela possa entrar na faculdade, com os membros fazendo depoimentos em diversas cenas, dando mesmo um tom mais real a dinâmica estabelecida.
Em Black-ish, Kenya colocou muito da sua vida pessoal para retratar a história da família Johnson com algumas diferenças pontuais, mas em #BlackAF é basicamente a vida dele adaptada em formato de série, a família aqui é composta por: Kenya Barris (como ele mesmo), Joya Barris (Rashida Jones) sua esposa, suas filhas Drea Barris (Ima Benson), Chloe Barris (Genneya Walton) e Izzy Barris (Scarlet Spencer), além de seus filhos menores Pops Barris (Justin Claiborne), Kam Barris (Ravi Cabot-Conyers) e o pequeno Brooklyn Barris (Richard Whitney Gardenhire Jr), todos introduzidos de uma forma rápida e interessante.
O maior problema do piloto, é que acontece muita coisa ao mesmo tempo, não só as informações que estão lá para direcionar a história, mas também os diálogos expositivos que tentam explicar o porquê de os personagens serem o que são e agirem do jeito que agem, acontece tudo muito rápido, com poucos respiros. As discussões em família, a bagunça das crianças, as discussões do casal protagonista, você fica realmente perdido, principalmente porque no meio disso tudo Drea tenta fazer um paralelo de afirmação entre o que aconteceu nos tempos da escravidão e a tentativa de afirmação de sua família que tem poder aquisitivo alto e agora esbanja, algo que achei pertinente como pontapé inicial, mas precisava de menos arcos no episódio para funcionar melhor e para que o espectador assimilasse bem.
Se o piloto tem dificuldade de estabelecer a série, o segundo episódio ainda carrega alguns vícios do episódio anterior, apesar de você conseguir enxergar melhor uma interação melhor da família. Em Because of Slavery Too (1×02) fica claro a total liberdade de Kenya Barris e seus roteiristas de escrever diálogos mais ácidos e com palavrões, além de colocar cenas mais polêmicas com consumo de drogas e outras situações de cunho mais adulto, que em suas outras obras seria difícil de retratar.
Mais liberdade, não necessariamente resulta em algo bom, as vezes a mão do roteiro pesa muito, tornando certas situações um pouco constrangedoras para quem não está acostumado com um humor mais rude e rasteiro. É nessa linha que a série se mantém, mas, a meu ver, a história só ganha foco mesmo nos episódios Still…because of slavery (1×03) e yup, you guessed it. again, this is because of slavery (1×04), é quando finalmente a série ganhas seus necessários respiros e começa a focar no individualismos dos pais e sua interação com os filhos.
Confesso que a série me pegou no episódio três quando a discussão sobre a sexualização precoce da mulher negra é colocada em contexto, trazendo um desenvolvimento bem vindo para Joya Barris e suas filhas, os diálogos funcionaram de forma tão orgânica, trazendo uma maturidade que ainda não tinha presenciado na série até ali. O episódio quatro foca no Kenya e sua relação com filhos, o texto é menos polido, mas mantém a crescente do episódio anterior, tratando agora sobre o papel dos pais negros na criação de seus filhos, assunto interessante e que ainda é pouco abordado em seriados com personagens centrados em pessoas negras.
Em termos de estrutura, a série melhora episódio após episódios, onde o formato de documentário começa a funcionar melhor, sem atropelar o desenvolvimento da narrativa e com uma edição que fica mais efetiva quando intercala os depoimentos, que aos poucos começa a acertar também no humor, que aos poucos vai encontrando o tempo certo. Um bom exemplo disso é que as discussões na sala dos roteiristas onde Kenya trabalha, tem ótimos momentos que refletem um humor de escritório que gera boas risadas, como acontece no episódio yo, between you and me… this is because of slavery (1×05) que abre a discussão sobre o papel do cineasta negro na indústria e sobre críticas aos projetos de seus colegas de profissão.
Este episódio inclusive fala sobre a nova geração não abraçar a sua própria identidade como negro, discussão trazida por Joya quando percebe que seus filhos não estão abraçando a própria negritude e os trejeitos culturais que vem na bagagem, por só quererem brincar. Esses pontos tornam #BlackAF suficientemente boa para ser acompanhada, porque apesar de ser voltada para um nicho específico, certas discussões são bem atuais e fazem parte da vida da família moderna.
A série mostra realmente a que veio no episódio hard to believe, but still because of slavery (1×06), quando o texto entra no campo das questões familiares sobre mulheres buscarem uma independência de forma a sair da sombra dos maridos, onde o roteiro trata de uma forma bastante coerente os dois lados de uma discussão colocando Kenya e Joya em lados opostos cada um tentando achar seu espaço dentro da relação. A maturidade com que tudo é tratado surpreende, mesmo que em alguns momentos gere algumas cenas bastante espinhosas quase saindo do lado mais leve que a série tinha se estabelecido inicialmente para tratar uma briga familiar bem intensa, para a minha total surpresa.
Este tipo de decisão que a série toma, arriscando a tornar um dos pais quase como um “vilão” da história ganha todo um novo contexto, porque afeta também as crianças e é ai que #BlackAF começa a se diferenciar das outras criações de Kenya Barris achando sua própria identidade no meio do gênero. É claro que o contexto não é novo, mas a forma de contar, a forma de estabelecer a narrativa que torna tudo mais empolgante de acompanhar.
De uma forma geral, #BlackAF não veio para restabelecer uma nova estrutura no gênero, mas vale a pena pelas discussões raciais embutidas, por ter menos pudores do que outras séries de mesmo formato e por manter uma linha crescente no que diz respeito a qualidade que vai melhorando até os dois últimos episódios. O season finale duplo consolida bem o formato, em i know this is going to sound crazy… but this, too, is because of slavery (1×07) e i know you may not get this, but the reason we deserve a vacation is… because of slavery (1×08), a série aproveita a viagem da família Barris para trabalhar todos os personagens de uma forma mais orgânica ainda que o desfecho traga o velho clichê açucarado de sempre.
Portanto, e sendo mais direto, você só vai saber se a comédia é realmente boa se assistir, porque pessoalmente eu acho que humor é uma coisa muito particular, o que funciona para mim, pode não funcionar para você, ainda mais aqui que o humor tem bastante referências e não se segura na acidez. A série ainda conta com uma trilha sonora ótima para os amantes do Hip-Hop e Rap, além de ótimas participações especiais de celebridades negras famosas dos EUA. No final das contas, o seriado como um todo é um bom entretenimento familiar, mostrando que quando se trata de famílias, as coisas podem parecer comuns, mas na verdade são mais complexas do que parecem.
Engenheiro Eletricista de profissão, amante de cinema e séries em tempo integral, escrevendo criticas e resenhas por gosto. Fã de Star Wars, Senhor dos Anéis, Homem Aranha, Pantera Negra e tudo que seja bom envolvendo cultura pop. As vezes positivista demais, isso pode irritar iniciantes os que não o conhecem.