Enquanto assistia Hunters (2020 -), eu só conseguia imaginar o quanto nazista ficcionais são um ótimo artifício narrativo. E que a coisa mais legal é que você pode fazer qualquer coisa com eles. Derreter, como em Indiana Jones e os Caçadores da Arca Perdida (Raiders of the Lost Ark, 1981). Incinerar, como em Bastardos Inglórios (Inglourious Basterds, 2009). Viagens temporais, como em Danger 5 (2011 – 2015). Até mesmo, manter uma amizade com um garotinho de 10 anos, como em JoJo Rabbit (2019), e claro, as representações maníacas unidimensionais de qualquer filme de guerra. Também, não me deixe lembrar de lobisomens nazistas… enfim, sua escolha. Vilões irão sempre ir e vir em diferentes tempos e conceitos culturais, mas nazistas são pra sempre. Mas, isso não quer dizer por serem, para sempre, os vilões perfeitos se você quer mostrar o mau por mau e estão no alcance mais fácil de uma narrativa, que eles sempre serão uma boa fonte de entretenimento. Todos os exemplos citados nesse parágrafo conseguiram pegar esses personagens e inseri-los numa narrativa distinta, coisa que Hunters, uma das mais recentes séries originais da Amazon, não consegue entregar de jeito nenhum. Eu acho até engraçado que uma série da Amazon tenha justamente nazistas fazendo testes e vivendo – se escondendo – na Amazônia. É só uma piada bem ruim.
A série até faz escolhas pragmáticas, que deviam vir a seu favor, como ambientar-se durante a década de 70 e utilizar de contextos políticos e sociais da época. Mas, isso logo é esquecido, já que americanos naquela época só queriam saber de disco music, reuniões secretas e nazistas fazendo planos para dominação do mundo.
Tenho que admitir que de todos os lançamentos recentes da telinha, Hunters foi a série que tive mais problemas em continuar, em me manter focada na história, e o pior de tudo, ligar para os acontecimentos. É incrível como escolhas estéticas podem destruir uma história que tinha muito a dizer, e um episódio piloto de 90 minutos também não ajuda em nada.
A história de Hunters é muito simples e pega emprestada de várias outras que já conhecemos: Nova York, 1977. A cidade é uma selva de conflitos raciais, com cada um no seu canto. A violência é disparada e é nesse cenário que encontramos o jovem Jonah (Logan Lerman), um órfão que mora com sua avó, uma sobrevivente do Holocausto, e de quem a história é emprestada. Uma noite, a casa é invadida e a avó assassinada por um suposto criminoso de guerra. Assim, Jonah descobre-se em busca de vingança com um grupo de caçadores nazista liderados por Meyer Offerman (Al Pacino).
O tom da série é logo definido na sua primeira sequência – de extremo mal gosto -, em que uma sobrevivente do Holocausto reconhece um criminoso nazista durante um churrasco durante um dia de verão. Como as regras da estética “cool e descolada” são claras, a cena logo termina com todos sendo completamente trucidados e mortos pelo nazista que simplesmente se senta e liga para a “alta cúpula” vir ajudá-lo. O que é isso? Seria uma crítica ao estado degradativo da política americana, a inversão de valores do “American Way of Life”? Eu não sei, porque a preocupação era estabelecer o estigma da ultraviolência, do excesso. “Tarantino style”. Mas completamente fora de linha.
E queria eu dizer que esse excesso de violência extrema só acontece algumas vezes, mas aí, eu estaria mentindo.
Eu perdi a conta de quantas falas e cenas – durante o curso de 10 episódios – que deviam parecer fazer total sentido no papel, ou quando você está conversando entre amigos, e não foram revisadas para serem pensadas em algo concreto.
O que me leva para minha maior – e mais longa – crítica sobre a série. O papel. Hunters seria uma ótima história no papel. Na mídia em que mais se apoia: história em quadrinhos. Séries de TV baseadas em quadrinhos já estão por aí faz mais de uma década, mais concentradas em super-heróis, mas estão aí. A novidade agora é a tentativa na tradução – adaptação – do estilo narrativo e visual dos quadrinhos para um meio que é, igualmente, uma narrativa seriada. Lendo entrevistas com o criador da série, David Weil, me surpreendi como quanto temos gostos parecidos e crescemos e consumimos quadrinhos em abundância. Seríamos amigos, eu acho. Mas, às vezes, algo que você adora é justamente o seu ponto mais fraco. Hunters tenta se utilizar do universo e linguagem de quadrinhos com tanto esforço, que chega a parecer forçado. A história se apega a clichês “super-heróicos” de dar uma vergonha – quase que os nazistas tem uma base secreta subterrânea, e conversam por codinomes – e nenhum deles consegue ser apenas uma reimaginação, não, existe uma vontade de fazer aquilo parecer “original”. Os personagens são todos baseados em características ou apresentações de personagens já conhecidos – Os Hunters são, basicamente, a Liga da Justiça Internacional. Nesse quesito, o que mais me incomoda é que não houve esforço em criar histórias para cada um dos integrantes, algo que talvez fosse benéfico para série, e a tiraria do lugar comum em que se encontra. Queria poder ter tempo para comentar sobre cada um deles, mas só posso dizer que para uma série que se promete advogar e “lacrar” pela discriminação e preconceito contra judeus, vocês esqueceram completamente do elenco negro e a única personagem negra do elenco principal não tem nenhum backstory.
São inúmeras as tentativas de se apropriar da linguagem através de uso de justaposição, uma técnica bastante usada nas histórias em quadrinhos, para a qual é usado o termo “show and tell” – algo como, “ver e contar”. Ou seja, a cena é descrita enquanto vemos a mesma, mas quadrinhos é um meio sem som, onde a imagem-texto precisam ditar ritmo sequencial, de um quadro para outro, e criar impacto. Quando você tenta trazer isso para televisão, para um meio que utiliza movimento e som, causa redundância, não parece natural.
Durante uma sequência que vemos um plano ser executado entre o grupo, que estão divididos em funções, os personagens falam e repetem ações que já estamos vendo. São 10 minutos gastos que podíamos ter “assistido” ao plano desenrolar, mas ficou parecendo um sketch do Saturday Night Live (1975 -).
Muitas vezes, senti como se estivesse vendo um garotinho tentando recriar suas histórias de gibis favoritas, mas tendo a infelicidade de ter que contar uma história pessoal e historicamente íntima junto – a história da série é baseada no Holocausto vivido pela avó de David -, e fez com que uma narrativa que poderia ser uma história moralista e de cunho progressista, virou um vitimismo e revanchismo barato que almeja tirar risadas de uma assunto bastante sério. Pessoalmente, eu fiquei me perguntando porque Hunters sentiu a necessidade de brincar com essas descrições do Holocausto. Jogos de xadrez com humanos? Competições de canto letais em campos de concentração? Existem tantas histórias assombrosas que já ouvimos ou lemos, relatos que fazem perder uma noite de sono, então porque criar esses “mitos” bizarros e fazer o trabalho das pessoas que negam que o Holocausto existiu? A questão de moralidade na série é algo muito “preto no branco”, “vida ou morte”, “certo ou errado”, é quase uma obra objetivista, que não se preocupa em explorar as áreas cinzas.
Mas nem tudo é ruim. As cenas em que o grupo realmente se junta e trabalha como uma célula para ir atrás daqueles que querem a volta de um “Quarto Reich”, faz uma ótima visita às raízes exploitation do estilo. Talvez seja isso, mais exploitation e menos quadrinhos. Embora todos os problemas gigantes que tive com Hunters – e foram muitos -, eu aplaudi a maneira como expuseram o crescimento do supremacismo branco na sociedade atual. Nem sempre utilizando de sutileza e sendo “bem na sua cara!”, surte, sim, um efeito, e numa época em que pessoas escutam qualquer coisa vindo de pessoas laranjas, é bom que isso venha de uma série de streaming.
Como eu disse, embora “Hunters” melhore à medida que o grupo de Meyer se move no centro do palco (eu particularmente gostei do casal sobrevivente do Holocausto, Murray e Mindy), perde totalmente o enredo no episódio final, montando o que parece ser uma segunda temporada potencial ainda mais absurda e completa de clichês para todos os cantos. Se realmente retornar, eu não quero ter que fazer outro review. Parafraseando meu gibi favorito: “Hunters, nunca mais!”.
Nerd que formada em Cinema por razões cósmicas do universo. Também faz parte do site Tapioca Mecânica e adora dividir seus conhecimentos em cultura pop com tudo e todos. Só queria ter mais tempo para acompanhar tudo.