Honey Boy – O poder da vulnerabilidade.

 

Falar de si mesmo sempre é difícil, remoer os erros do passado, os problemas nunca resolvidos, os assuntos inacabados… Tudo isso dói. E, levados pelo nosso instinto de preservação e sobrevivência, estamos sempre tentando evitar a dor. Mas, nem todas as dores podem ser evitadas, algumas precisam ser trabalhadas. Isso não significa, necessariamente, fazer um filme. Mas, pelo visto, Shia LaBeouf e eu concordamos que pode sim ser uma boa saída.

Em Honey Boy (2019) (o título nacional ficou O Preço do Talento, mas como dito no nosso podcast, achei horrível e vou usar o título original mesmo nesse texto), Otis (Noah Jupe) é uma criança de 12 anos e ator em ascensão, mas sua vida pessoal gira em torno de um pai difícil. James (Shia LaBeouf) é um veterano do exército que está em reabilitação de seu vício em drogas e dedica sua vida à carreira do filho, mas que nem sempre consegue ser o pai que ele deveria. Já adulto, Otis (Lucas Hedges) precisa se internar em uma clínica de reabilitação para tratar de seu vício em bebidas alcoólicas, o que faz com que relembre muitos dos abusos cometidos pelo pai quando criança.

Este é o primeiro roteiro de longa escrito por Shia LaBeouf e é mais ou menos uma autobiografia onde ele, Shia, interpreta seu próprio pai. Uma ideia meio maluca, mas que casa totalmente com a persona de Shia LaBeouf no imaginário popular, já que ele é um ator, no mínimo, controverso. A grande maioria deve conhecê-lo ou por causa de Transformers ou da variedade de memes e histórias bizarras que ele protagonizou depois que saiu da franquia.

Apesar de estar ansiosa para ver o filme, a ideia também me causou preocupação, porque a probabilidade do filme se tornar uma jornada egocêntrica e autofágica demais era grande. Principalmente com a história de vida do ator, tragicamente perfeita para esse tipo de projeto. LaBeouf está muito longe de ser só um ator de Hollywood que perdeu a cabeça. Vindo de uma família tão pobre quanto problemática, Shia começou sua carreira de comediante aos dez anos de idade tentando uma vida melhor. Aos doze ele realmente estourou no papel de Louis Stevens do seriado “Even Stevens”, da Disney Channel. O dinheiro e a fama conquistados obviamente só potencializaram os problemas, levando Shia a abusar de drogas, principalmente o álcool e se meter em enrascadas cada vez maiores.

Entretanto, para minha surpresa, Honey Boy não é exatamente sobre isso. A história não está interessada em demonizar James, fazendo dele um vilão unidimensional caricato, muito pelo contrário. James é um ser humano que também foi marcado por seus demônios, que tenta acertar, mesmo errando muito. E, para que essa mensagem seja efetiva, a direção de Alma Har’el é imprescindível. Apesar de ser o seu primeiro longa de ficção, o olhar da documentarista e o fato de ela também vir de uma família de dependentes químicos são o toque que o filme precisava para ser o mais intenso e íntimo possível, partindo de uma história extremamente pessoal e universal ao mesmo tempo. Afinal, quem não tem algum tipo de conflito com seus pais, por menor que seja?

Mas a força principal de Honey Boy não está na coragem de Shia LaBeouf em se mostrar totalmente vulnerável e mostrar seus maiores erros e medos para o público, nem na fotografia absolutamente apaixonante e “neostálgica” (ouça o nosso podcast para entender melhor a origem desse termo) de Natasha Braier. Nada disso, o verdadeiro charme do filme está em Noah Jupe, responsável por interpretar o jovem Otis. Jupe mostra aqui muita maturidade ao interpretar uma pessoa que não só existe como está contracenando com ele, há muita entrega e muito carisma sem nunca tentar emular Shia quando criança. Realmente, um talento a se observar.

Lucas Hedges, por outro lado, está tão bem e tão parecido com Shia, na voz e nos trejeitos, que às vezes atrapalha um pouco a imersão na história que, quando está centrada no passado, consegue superar a marca do filme meio-que-biográfico para comunicar e emocionar mais e melhor. Quando Lucas e o núcleo da reabilitação entra em cena é como se lembrássemos: “ah é, esse filme é sobre a vida do fulano”. Isso não é exatamente um problema, pessoalmente falando, só me fazia refletir mais sobre os caminhos que traçamos e as escolhas que fazemos, colocando essa história como ponto de partida. Mas, eu já era fã de Shia LaBeouf antes de tudo isso, então talvez minha opinião seja bastante tendenciosa nesse sentido. Desculpa salientar isso só nesse ponto da resenha, falha minha.

Existem, porém, outros motivos que podem ter influenciado na minha leitura positiva do longa. O único filme que eu escrevi e dirigi na vida foi um curta-metragem fortemente inspirado na minha relação com a minha mãe. Na época, ainda na etapa do roteiro, um dos meus professores me puxou de canto e disse estar preocupado, me alertou do risco de eu estar me expondo muito e quis se certificar de que eu estava certa do que estava fazendo e a minha resposta foi muito parecida com a resposta do próprio Shia quando perguntado do que o motivou a levar o projeto para frente: “É como um exorcismo”. Algumas dores precisam ser trabalhadas e se você tem a chance de usar seus problemas para se conectar com outras pessoas que passaram por situações semelhantes, aproveite. Com certeza não vai ser fácil, mas você vai aprender muito e o resultado vai ser o mais honesto possível. Esse é o poder da vulnerabilidade.

 

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