Luta por Justiça – Culpado, até que se prove o contrário

Os EUA ocupam a primeira posição no ranking de países com a maior população carcerária do mundo. Sendo que 40% dos presos são negros, mesmo que a população preta só seja de aproximadamente 12% dos cidadãos norte americanos. Em 1865, entrou em vigor a 13ª emenda, esta que previu a inconstitucionalidade da escravidão. Entretanto, apesar de extremamente importante, essa emenda é repleta de brechas, permitindo o trabalho forçado e a relativização dos maus tratos ao réu devidamente condenado, assim, transformando os pretos de escravos a criminosos.

Como a escravidão era o sistema econômico vigente na época e depois da sua abolição não ocorreu nenhum tipo de reparação histórica e inserção do negro à sociedade, esse grupo racial começou a ocupar as favelas e as periferias dos centros urbanos. O encarceramento tornou-se a tática perfeita para continuar atendendo aos interesses econômicos da elite, já que nos EUA, naquela época, afrodescendentes podiam ser presos por crimes como vadiagem, por exemplo. Todavia, esse cenário obteve outras proporções quando a guerras às drogas e as políticas de lei e ordem foram instauradas por Nixon, Reagan e Clinton, dos anos 70 até os anos 2000. Nesse período a população carcerária dos EUA foi de 500 mil para 2 milhões, sendo que muitas das prisões ocorriam pelo porte de crack, que era a droga mais popular nas periferias, por ser barata. Em contrapartida, a cocaína era a droga mais frequente nos bairros ricos e a pena pelo porte de 3 kg de pó equivalia a de 30 gramas de crack. Por fim, vale lembrar que o sistema penitenciário dos EUA, por ser composto também por iniciativas privadas, almeja sempre o lucro antes de tudo, ganhando muito dinheiro com as ligações feitas pelas famílias dos detentos, por exemplo.

No Brasil, a realidade é semelhante. Com a terceira maior população carcerária do mundo, 60% dos presos do país são negros sendo também muitos dos delitos devido a famigerada guerra às drogas, onde não existe uma definição jurídica precisa de quando um usuário é considerado traficante, deixando isso por conta da polícia. Depois de abordado e encarcerado, mesmo que o réu não tenha feito nada, 40% dos detentos se enquadram na categoria de presos provisórios, ou seja, pessoas que estão aguardando julgamento, muitas vezes podendo ser absolvidos. Porém, 80% desses indivíduos ficam encarcerados em celas com pessoas já condenadas esperando meses até a sua primeira audiência com o juiz. Com isso as cadeias funcionam como uma escola do crime, aumentando a violência aqui de fora, já que o intuito da prisão é recuperar  e reinserir o cidadão na sociedade, afinal, é financeiramente inviável o estado bancar prisões perpétuas de tanta gente.

No audiovisual, diversas obras já representaram a violência policial e o racismo desta instituição, como a série Olhos que Condenam (When They See Us, 2019), o documentário A 13ª Emenda (13th, 2016) e o fantástico terceiro episódio do remake de The Twilight Zone (2019 -). Muitas vezes, o cinema e a TV optam por expor acontecimentos reais no lugar de uma história de ficção, sendo Luta por Justiça (Just Mercy, 2019) mais um desses casos.

Lançado em 2019, o filme, dirigido por Destin Daniel Cretton, conta a história de Bryan Stevenson (Michael B. Jordan), um advogado recém formado em Harvard que começa a trabalhar com prisioneiros sentenciados à morte que não tiveram a cobertura jurídica adequada e um julgamento justo.

A narrativa do filme tem como foco a busca de Walter McMillian (Jamie Foxx) para provar a sua inocência, depois de ser condenado pelo assassinato de uma jovem branca num pequeno condado do estado do Alabama. Michael e Jamie entregam personagens carismáticos com uma carga emocional potente, fazendo com que o público, principalmente preto, se identifique logo nos primeiros minutos com os dois, tomando para si todos os acontecimentos injustos da trama. Como o filme foi baseado no livro do Bryan Stevenson, cada diálogo com a polícia, cada ação por impulso e cada injustiça jurídica consegue ser posta com a realidade necessária para compor a tensão do longa, tornando-a constante, só permitindo que o espectador respire depois dos créditos, quando os desfechos reais daquela luta por justiça são apresentados ao público.

O fato da narrativa apenas retratar o ponto de vista do suposto assassino é proposital. O recorte que o filme decide discutir é o encarceramento e o genocídio em massa da população negra, favelada e periférica dos EUA. Porém, a sensação de que falta alguma coisa naquela história pode aparecer para alguns, já que a vítima e sua família nem sequer aparecem em tela, mesmo que o discurso principal da promotoria e dos policiais seja em prol da segurança e justiça para com os pais que tem que viver com o que aconteceu com sua filha, precisando de uma real conclusão para essa história. Talvez, flashbacks do primeiro julgamento de Walter ajudassem a preencher melhor esse panorama.

A discussão de quando e como a pena de morte deve ser aplicada também está presente no roteiro, mesmo que superficialmente. Contudo, não existe jeito perfeito do governo matar pessoas. Suicídio assistido, injeções letais, overdose de opioides, cianeto, gás de nitrogênio e cadeira elétrica são alguns dos meios já testados pelo Estado na hora de executar alguém e todos eles, sem exceção, são brutais da sua própria maneira, já que, devido ao seu juramento, médicos não participam da criação e planejamento desses métodos, sendo estes criados pela indústria.

Luta por Justiça, é um filme bastante competente na hora de abordar a sua mensagem principal, mesmo que às vezes ele beire o clichê, apostando no impacto emocional e não na discussão em si. Entretanto, mesmo sendo esnobado pelo Oscar, a existência desse filme é importantíssima na luta por direitos da população preta, já que ele dá voz para histórias negras, inicialmente desconhecidas pelo grande público, e essa notoriedade é necessária quando um grupo racial vive sempre à margem da lei, historicamente perdendo vários anos de sua vida em um processo exaustivo de inocência que nem deveria existir. No fim, somos produtos do que nossos ancestrais escolheram… se formos brancos.