Já não é novidade que a Netflix aposta em trabalhos conceituais. Filmes como Roma (Roma, 2018), produzidos completamente em preto e branco e retratando um recorte de uma vida trivial e cotidiana, de pessoas igualmente comuns, estão cada vez mais presentes no serviço de stream. No final de 2019 pudemos conferir o drama História de Um Casamento (Marriage Story, 2019), que pode até ser considerado maçante para alguns, mas é uma obra prima que rendeu um Oscar e um Globo de Ouro para Laura Dern como Melhor Atriz Coadjuvante e mais cinco indicações, incluindo Melhor Atriz, Ator e Filme. Ou seja: Netflix não tem medo de ousar e está certa em não ter.
Neste último fevereiro fomos apresentados à Entre Realidades (Horse Girl, 2020). Dirigido e escrito por Jeff Baena, o filme traz como protagonista a atriz Alison Brie, que provavelmente você conhece por Glow (Glow, 2017 -) e que também é creditada como escritora junto com Jeff. Nesse caso específico, se você assistir ao filme antes de buscar alguma informação prévia, esteja certo: será pego de surpresa.
Acompanhamos aqui a trajetória de Sarah (Brie), uma mulher simplória, tímida e que trabalha em uma loja de artesanato. Sua vida é pacata (tediosa, eu diria). Ela tem dificuldade para fazer amigos, passa suas noites assistindo repetidamente a uma série de TV (convenientemente chamada Purgatório) e confeccionando pulseiras. A trama de uma hora e quarenta e cinco minutos tem, em sua primeira metade, todas as características de um drama comum. Somos apresentados à personagem de maneira lenta, minuciosa. Aos poucos o diretor vai nos fazendo entrar na sua cabeça e perceber gradativamente que algo não está certo com a sequência dos fatos, nem com a maneira em como Sarah entende a realidade.
Na segunda metade do filme o enredo se transforma em um thriller psicológico hiper confuso. O ponto de virada acontece quando Sarah começa a ter sonhos esquisitos onde ela está deitada em uma sala branca e vê outras pessoas que, posteriormente, também encontra quando está acordada. A partir daqui somos bombardeados com teorias de conspiração que podem envolver clones, abdução e até viagens no tempo. O que é melhor: o filme nos dá pistas para crer que tudo isso pode ser verdade, deixando a cargo do espectador resolver sozinho se o que ele vê é real ou se passa apenas na mente da protagonista. Os acontecimentos se misturam e nossa visão é sempre a de Sarah. Ou seja, se ela fica confusa, ficamos também. E a dificuldade que ela tem em trabalhar o mundo a sua volta é sentida também por quem está do lado de cá.
Em alguns momentos parece evidente que Sarah está delirando, pois o que se passa foge muito ao que nos parece possível. Porém, como percebemos o mundo pelos olhos dela, em outros, parece lógico que coisas incomuns aconteçam e que suas teorias de conspiração podem estar certas. Mesmo quando ela duvida do que diz o assistente social com quem conversa ou quando ela enxerga, através de uma janela, a imagem dela mesma deixando o prédio onde se encontra, em uma fuga no meio da noite.
Brie está perfeita no papel. Consegue fazer maravilhosamente essa transição entre uma mulher que começa introspectiva, que fala pouco, com uma voz tão baixa que quase não se ouve e com uma dificuldade de olhar nos olhos das pessoas, e depois evolui para uma figura extremamente obstinada, que acredita seriamente na sua verdade e que procura, determinada, entender o que está acontecendo, mesmo que isso pareça absurdo para os indivíduos com que ela se relaciona. Chega a ser angustiante!
Por fim, Netflix nos entrega um trabalho fantástico que fala sobre um assunto muito pouco retratado com tamanha seriedade, tal como Jeff e Alison conseguiram: a depressão psicótica. Um quadro de depressão em que a pessoa pode ter pensamentos e ideias que não são compatíveis com a realidade, o que pode acarretar perda total de vínculo com a verdade. As pistas são fornecidas ao longo da trama quando somos informados que há casos de problemas psicológicos severos no histórico familiar de Sarah. Mesmo assim, a interpretação da história ainda pode ficar a cargo do espectador, uma vez que nada é explicado literalmente e, como dito antes, há margem para crer que tudo que aconteceu, aconteceu de fato e não apenas na imaginação da protagonista. Um filme complicado, porém, bastante simples e com um desfecho completamente inesperado. Se você gosta de elementos bizarros, curte uma boa trilha sonora e aprecia histórias que te fazem perguntar “o quê?!” a cada cinco minutos, Entre Realidades foi feito pra você.
Só pra saber, a incidência internacional de transtornos psicóticos é de 26,6 por 100 mil pessoas/ano, segundo um estudo publicado na revista The Lancet Public Health, de 2019. Privação econômica, desigualdade e instabilidade emocional estão associadas ao aumento de incidência dos transtornos psicóticos na população. Nesses casos, homens apresentam maior risco de incidência do que mulheres e homens jovens mais ainda. O tratamento normalmente é feito através de associação de medições antidepressivas e antipsicóticas. A cura, normalmente, depende da causa. Em alguns casos não há cura viável, mas, se a causa for identificada, o resultado costuma ser satisfatório. Em casos crônicos, o tratamento com medicação pode durar a vida inteira, para manter os sintomas sob controle.
Gay, Nerd, jornalista e podcaster. Chato o suficiente pra achar que pode se resumir em apenas quatro palavras. Fã de X-Men e especialista em Mulher-Maravilha. Oldschool – não usa máquina de escrever, mas bem que poderia. There’s only one queen, and that’s Madonna!