A década de 70 foi um importante período para o cinema de Hollywood, foi o momento que o público clamava por algo novo e de certa forma mais representativo, principalmente relacionado ao público negro. Foi então que surgiu o importante movimento “Blaxploitation” ou “Blacksploitation” com o objetivo de atender essa demanda, um cinema feito por atores e diretores negros para o público negro. Nesta época surgiram filmes marcantes como Shaft (1971), Sweet Sweetback’s Baadasssss Song (1971), O Terrível Mister T (Trouble Man, 1972), O Chefão de Nova York (Black Caesar, 1973), Coffy: Em Busca da Vingança (Coffy, 1973), Dolemite (1975), e O Samurai Negro (Black Samurai, 1977), só para citar alguns, com trilhas sonoras composta pelos grandes cantores/compositores da música negra como: James Brown, Quincy Jones, Barry White, Marvin Gaye, Isaac Rayes, entre outros, e atores/atrizes hoje consagrados que deixaram sua marca nesta época, destaque para Richard Roundtree (Shaft), Pam Grier (Coffy), Sammy Davis Jr (Black Caesar) e Rudy Ray Moore, estrela do filme “Dolemite”.
Este movimento foi tão importante, que influenciou o cinema hollywoodiano por anos e até mesmo diretores consagrados como Tarantino, que fez o longa Jackie Brown em 1997 tendo forte influência no período Blacksploitation. E até hoje, esta era é marcada como divisor de águas no cinema dos EUA, foi o período em que o povo negro pôde se ver na tela de cinema, onde o gueto, o negro urbano cheio de trejeitos e exageros era representado de uma forma que realmente conversava com audiência, misturando ação, comédia e muita sexualidade. E é neste contexto que a nova produção da Netflix dirigido por Craig Brewer, de Ritmo de Um Sonho (Hustle & Flow, 2005), foca, numa mistura de biografia e tributo, Meu Nome É Dolemite (Dolemite Is My Name, 2019) estreou no dia 25 de Outubro carregado de muito charme e humor.
No roteiro, assinado por Scott Alexander e Larry Karaszewski, a narrativa é bastante interessante por usar o formato conhecido do “filme dentro do filme”, uma vez que mostra os bastidores da produção do longa “Dolemite” como parte da história contada, então acompanhamos ascensão meteórica de Rudy Ray Moore (Eddie Murphy), indo de cantor fracassado se transformando em um dos maiores comediantes da época, até se consolidar como estrela de cinema ao ousar lançando sua criação Dolemite na tela grande. Aqui Scott e Larry são espertos em capturar exatamente a essência do período blacksploitation, ao mesmo tempo que presta pequenas homenagens com citações aos ícones do período que viram inspiração na boca dos personagens. Desta forma, o primeiro ato pode até parecer um pouco apressado, mas mostra que o longa não perde em desenvolvimento, seja narrativo ou de personagens, mas ganha pontos por nos mostrar exatamente onde o filme se torna atraente e divertido num crescimento de qualidade progressivo.
Se o roteiro escrito a duas mãos é enxuto, a direção de Craig Brewer se mostra segura, consegue não só equilibrar as expectativas, mostrando uma mão apurada para o drama, mas também afiado para inserir humor sem que isso saia forçado. O período Blacksploitation foi marcado por exaltar a beleza negra sexy, ousada e sem filtros, este longa consegue trazer exatamente essas características, mas sem perder o foco do que quer contar, mostrando que o Meu Nome É Dolemite é um filme com coração e que mostra a visão ousada e sem medo de Rudy Ray Moore de desafiar e superar expectativas, moldando seu próprio destino.
Muito do que se tem de positivo na narrativa, não pode ser creditado apenas ao sólido roteiro e a direção, mas principalmente ao elenco que simplesmente dá show. A escolha dos atores foi bastante feliz, a começar com Eddie Murphy, que não trabalhava desde o drama Mr. Church (2016), mas que aqui mostra que o ator realmente voltou à ativa em grande estilo. Depois de assistir ao longa não tenho dúvidas que Murphy (que também atua como produtor do filme) foi a escolha mais acertada para o papel de Rudy, seja nos trejeitos, seja no otimismo, seja no coração e no carisma que o ator traz consigo, este talvez seja o papel mais marcante de sua carreira desde Dreamgirls: Em Busca de Um Sonho (Dreamgirls, 2006), onde interpretou o furacão James ‘Thunder’ Early que lhe rendeu uma indicação ao Oscar de melhor ator coadjuvante (prêmio que deveria ter vencido, mas academia costuma cometer erros). Por isso, não é exagero dizer que o ator está tão bem aqui no papel do comediante, que se for recompensado com uma indicação ao Oscar ano que vem não será surpresa.
Se Murphy consegue segurar o filme como protagonista, o elenco coadjuvante sólido serve para colocar a cereja do bolo em Meu Nome É Dolemite, Craig Robinson mostrando um lado cantor bastante interessante, Tituss Burgess, Keegan-Michael Key, Kodi Smit-McPhee, Mike Epps, sem contar as participações especiais dos cantores Snoop Dog e T.I, além do comediante Chris Rock. Porém os destaques mesmo do elenco de apoio ficam por conta de Da’Vine Joy Randolph como Lady Reed, uma mulher forte, empoderada e com presença, mas também cheia de coração.
Outro grande destaque aqui fica por conta de Wesley Snipes no papel de D’Urville Martin, um ator que se acha consagrado porque apareceu em grandes filmes dos anos 70 em participações pequenas. É difícil ter destaque em cena com Eddie Murphy roubando todas, mas Snipes compõe um personagem engraçado e cheio de peculiaridades, trejeitos e um ar cômico que consegue roubar todas as cenas em que aparece. Se esse filme marca o grande retorno de Eddie Murphy a papéis de destaque, posso dizer que este também é o grande retorno de Snipes em um de seus melhores papéis em anos.
Em termos de produção o filme é impecável, com um design de produção excelente, principalmente nas cenas das filmagens do longa “Dolemite” no segundo e terceiro atos, onde o longa realmente excede expectativas. A fotografia solar e charmosa dá um tom dourado a produção como forma de exaltação a era de ouro de Hollywood. O figurino é outro grande destaque, as roupas exageradas, brilhosas e extravagantes refletem a época de glamour e o estilo negro de se vestir, mais uma vez Ruth E. Carter (ganhadora do Oscar por Pantera Negra) faz um trabalho impecável que pode lhe render outro Oscar de figurino.
No geral Meu Nome É Dolemite é um filmaço, capaz de prender a atenção e deixar um sorriso estampado no rosto do expectador do começo ao fim. O longa não é só um tributo ao cinema dos anos 70, mas é um tributo bastante respeitoso a era Blacksploitation (tão bom que você vai ficar curioso para saber mais sobre os filmes desta época), exaltando de forma positiva e otimista uma época que a comunidade negra lutava por espaço na sociedade americana. O filme ganha pontos por desenvolver bem a visão extraordinária de Rudy e contar sua história de uma forma empolgante mostrando sua influência dentro da indústria cinematográfica, que se engrandece ainda mais através da atuação sobrenaturalmente eficaz de Eddie Murphy. É um filme sem pudores, sem medo de ser feliz, exagerado na medida, engraçado na essência, dramático nos momentos certos e que exalta a negritude na busca por espaço fora e dentro da tela grande. Consolidado por um roteiro e uma direção impecáveis, além de um elenco dedicado e bastante consistente, Meu Nome É Dolemite não é só uma das melhores produções da Netflix dos últimos anos, mas também pode ser considerado um dos melhores filmes do ano, sem sombra de dúvidas.
Engenheiro Eletricista de profissão, amante de cinema e séries em tempo integral, escrevendo criticas e resenhas por gosto. Fã de Star Wars, Senhor dos Anéis, Homem Aranha, Pantera Negra e tudo que seja bom envolvendo cultura pop. As vezes positivista demais, isso pode irritar iniciantes os que não o conhecem.