Amor até as Cinzas – Uma dolorosa jornada em direção ao que já foi

Ao terminar de ver Amor até as Cinzas (Jiang Hu Er Nü, 2018) tive a convicção de que Jia Zhangke é, certamente, um dos diretores mais interessantes de se observar na atualidade. E é curioso como, mesmo centrando a maior parte de seus trabalhos em um universo tão diferente do meu, uma China pós-Era Mao Tse-tung, decidida a rapidamente transformar sua economia e, consequentemente, toda sociedade e modo de vida de grade parte de sua numerosa população, Zhangke consegue contar histórias universais e completamente compreensíveis, pois profundamente humanas. Ou talvez seja exatamente este o motivo de meu interesse pelo cinema do diretor.

Mas também sou claramente fisgado por sua obra, especialmente neste seu último longa, ao perceber um movimento cada vez mais comum do cinema contemporâneo ao incorporar um cinema de gênero, sem deixar, claro, de subvertê-lo, o que o diretor faz aqui de uma maneira magistral, trazendo as convenções dos filmes de gângster unidas a um romance, tudo isso num contexto de uma China interiorana, um pouco diferente do que estamos acostumados a ver em cartões postais.

No filme Qiao (Tao Zhao, mais uma vez excelente) é namorada de Bin (Fan Liao), um gângster de uma pequena cidade em uma província rural, que, após o assassinato de um dos líderes da máfia local, se vê em uma posição de substituto neste lugar agora vazio do “chefe”, passando a ser perseguido por vários inimigos. Mas, quebrando as expectativas tradicionais do gênero, o protagonismo do filme não é de Bin, mas de Qiao, apresentada como uma mulher extremamente confortável naquele lugar de companheira de um pequeno, mas imponente, mafioso. Toda a primeira parte do filme, que se passa no início dos anos 2000, é responsável por nos expor aquele universo onde o tradicional começa a dar lugar a uma modernidade ocidentalizada, expressa nas músicas, na dança, nos charutos.

Mas na tentativa de salvar seu amado, na única e extremamente bem filmada cena de ação do longa, Qiao acaba fazendo um sacrifício e, não só é levada para a prisão como omite o envolvimento de Bin com quaisquer ações criminosas que poderiam o comprometer, o que lhe rende cinco anos em uma penitenciária. Temos então a primeira grande elipse (passagem de tempo) do filme, quando Qiao sai da prisão e tenta retornar para seu universo de antes. Entretanto, a moça parece desembarcar em um lugar completamente diferente do que deixara anos atrás, e é aí onde está a grande jogada de Zhangke. Através desta dolorosa jornada de tentativa de retorno o diretor evidencia o enorme impacto da rápida transformação da sociedade chinesa em tão pouco tempo.

Qiao precisa se valer de toda sua sagacidade em várias situações diferentes em busca de um regresso que parece cada vez mais inalcançável, o que a força a compreender estes novos tempos, mesmo a contragosto. Mas compreender não significa aceitá-lo completamente, e a protagonista acaba se adaptando a ele de uma forma a se colocar entre o passado tradicional e o moderno presente. Ao mesmo tempo o filme nunca deixa de lado o dramático romance em que havia construído seu alicerce desde o início, mas também subverte-o, colocando Qiao e Bin em posições completamente diversas das que ocupavam na primeira parte do filme.

Com Amor até as Cinzas fechando uma incrível trilogia junto com Um Toque de Pecado (Tian Zhu Ding, 2013) e As Montanhas se Separam (Shan He Gu Ren, 2015) o cineasta chinês, com sua aguçada percepção do momento atual, mas também do passado de seu país, se mostra não só como um extraordinário contador de histórias como também um excelente observador. Através das sensíveis jornadas de seus personagens Zhangke nos revela (pelo menos a expectadores que, como eu, não estão em contato mais direto com uma realidade oriental) toda uma nova perspectiva sobre uma sociedade em constante conflito e transformação.