Conhecemos a personagem principal de Fleabag, interpretada pela magneticamente carismática Pheobe Waller-Bridge (que também assina o roteiro), num dia difícil. Sempre ofegante, ela vai de pessoa a pessoa tentando não pedir dinheiro, rouba uma ou duas delas no caminho e faz um monólogo sobre como ela é uma pessoa terrível, para o qual tem como resposta uma piada e uma oferta de táxi do pai, um desajeitado mas afetuoso e amigável Bill Paterson. Fleabag é um termo usado para descrever uma pessoa como desconfortante, inconveniente. É assim que a personagem, que não tem um nome, age a maior parte do tempo. Seu maior prazer é tirar os outros, principalmente seus familiares, de suas zonas de conforto, desmascarar as hipocrisias dos contratos sociais. É como se ela quisesse que todos se sentissem como ela, “a Fleabag”, se sente.
A melhor amiga dela, Boo, morreu recentemente. Os momentos na série que compartilhamos com ela só podem ser descritos como pura felicidade, Jenny Rainsford entrega uma performance encantadora e calorosa, o que nos faz realmente entender a dor de Fleabag. Apesar de morta, Boo tem papel importante e, inclusive, tem algumas das melhores frases e momentos da série, a mais marcante talvez, que pode ser tida como a mensagem central da trama, é a memorável: “É por isso que eles colocam borrachas no final de lápis, pessoas cometem erros”. Os eventos que rodeiam a morte de Boo são peças importantes da primeira temporada, que serve basicamente de apresentação e aprofundamento para todos os personagens.
Em sua segunda temporada, aconteceu o que parecia impossível, a série conseguiu se superar. Há momentos tão magistralmente escritos e executados que merecia ser analisada cena por cena. O primeiro episódio da segunda temporada, por exemplo, é um dos muitos momentos que mereciam um texto à parte. A Waller-Bridge entrega um jantar passivo-agressivo perfeito com tudo que a gente queria saber sobre os personagens nesse tempo de um ano entre as duas temporadas sendo revelado com calma, nos jogando migalhas antes de entregar a informação. Os diálogos não são somente engraçados e dinâmicos, carregados por ótimas performances, são tensos. O jeito que cada um quer esconder, descobrir algo ou só não piorar a situação, filtrando o que contam uns aos outros, se provocando por impulso ou intenção, é brilhante. E ela não só dá enfoque nas grandes reações, mas destaca as pequenas, o que agrega muito aos personagens. Talvez o melhor exemplo disso seja quando Claire abre um sorriso desconfortável, num take que dura menos de 3 segundos, depois da Madrinha falar que ela não parecia poder ter bebês. O jeito que o diretor Harry Bradbeer cria tensão, além da câmera, sempre na mão, já característica da série, usada literalmente em todas as cenas, com closes e o controle de cortes, aumentando a velocidade deles junto com a intensidade da situação, o que só faz realçá-la, revelando informações quase que como reviravoltas, separando personagens e mostrando reações. Criando barreiras apenas para quebrá-las em seguida. Até que tudo explode num momento quase slapstick, mas ainda mantendo seu peso dramático.
E é impressionante como conseguem fazer manter esse peso o tempo todo, mesmo com o quão engraçada a série chega a ser. Nos blockbusters de hoje em dia, pelo medo de ser taxado como cafona, é comum ver comédia sendo usada em momentos dramáticos para diluir eles, e Fleabag poderia cair nessa armadilha já que muitos desses momentos contam com uma piada, mas o peso se mantém por alguns motivos muito específicos. O primeiro sendo que a personagem principal usa humor porque quer intencionalmente se distrair e sair desses momentos. Na primeira temporada, a quebra da quarta parede é quase que um veículo de descontração da protagonista para evitar ter que lidar com a tragédia recente. Então o humor sempre tem intenção clara. E o segundo, é que as piadas da série servem muito mais para sensibilizar e envolver o público do que para distrai-lo, como a Fleabag tenta. Como sitcoms, elas vêm de situações comuns, mas parecem vir do coração. Muitas vezes elas são até meio tristes de tão genuínas. Mesmo se pararem uma cena para contar uma piada, a série vai usar isso para montar personagem e puxar sua atenção. E o humor está sempre desenvolvendo as relações entre personagens e é daí que surge o maior acerto da série.
Waller-Bridge desenvolve essas relações entre personagens com sutileza e maestria. À primeira vista, Claire (Sian Clifford) parece ser uma irmã convencida, sempre com um ar de superioridade. Nossa protagonista se diz distante dela, assustando-se com demonstrações de carinho, frustradas com as percepções umas das outras, mas quanto mais se aproximam, mais a máscara da Claire começa a cair. E esse ar de superioridade é progressivamente quebrado, revelando um real desespero e falta de confiança. Ela é a irmã mais bem-sucedida, mas com menos personalidade, as duas se invejam de certa forma. Quase como contra arcos, quando a personagem de Waller-Bridge parece mais confiante, vemos Claire, na maior parte do tempo, em crise. Quanto mais o tempo passa, mais entendemos o porquê disso. A Claire é a personagem que sempre disfarça seu desconforto porque é o mais confortável ou inofensivo a se fazer, e a vemos crescer para fora disso, até literalmente já que no fim da temporada ela abandona Martin.
Martin é marido de Claire, um bêbado casualmente misógino, que até poderia soar como uma caricatura, sendo ele constantemente bem escroto, mas vai além, pela excelente interpretação do Bratt Gelman que, mesmo que sempre desprezível, faz dele engraçado e humano, de um jeito que chega a dar pena do quão ridículo ele é. Martin, é, infelizmente, muito real. Seu monólogo final é extremamente sem noção, mas familiar, você já ouviu em algum lugar. Pessoas assim, infelizmente, existem… Dessas que acreditam que fazendo coisas boas aqui e ali ganham um passe para toda “má personalidade” delas. Acham que a solução é compensar seu lado ruim com seu lado bom, mantendo-se inapropriados e indesejáveis como o Martin. No fim, ele é sim um personagem odiável, mas lamentável também, que por mais que soe de uma nota só no começo, vai melhorando a medida que você pensa nele. Seus diálogos chegam a ser tão patéticos que às vezes quase soam… relacionáveis. E o Bratt Gelman entrega tudo com tanta exasperação que você sente pena por ele. Não é redimível, nem é essa a intenção, mas é tridimensional.
Do outro lado dos romances da série, temos o que protagoniza a segunda temporada. Fleabag e o Padre. Um amigável e carinhoso “vai se ferrar então” é o diálogo que inaugura a relação dos dois, ao qual Fleabag responde com um doce sorriso de aprovação e surpresa. E surpresa é o que essa relação constantemente providencia ao espectador. Apaixonando-se por um padre e ciente do celibato clerical, não demora muito para que Fleabag perceba o apuro em que se meteu. E o jeito com que a Waller-Bridge garante que a gente se apaixone pelo casal também, não só nos diálogos dinâmicos, envolventes, existencialistas e hilários entre os dois, é absolutamente brilhante. Após ficar claro o sentimento de um pelo outro, o Padre vê, em uma reviravolta chocante, não só toda a fachada da Fleabag, mas vê também a gente, a quarta parede! Ele entende o drama dela e vê que claramente usa essa persona charmosa e engraçada para esconder algo, e isso talvez boa parte da própria audiência não tenha visto. A reação dela? Um olhar suspeito e desconfortável para câmera. Ela não sabe o que pensar disso. Parece ainda sofrer do dilema do ouriço que veio com a perda de sua mãe e sua melhor amiga tão recentemente. Em uma cena anterior com a Boo, Fleabag pergunta onde ela deveria depositar todo o amor dela depois da morte da mãe. E Boo diz que o aceita. Depois de perder Boo, ela simplesmente tem medo de o depositar em qualquer lugar mesmo que precise disso desesperadamente. Mas ela confia no Padre e supera isso, pois ele a conhece de verdade, aceitando o seu amor e o colocando nele. O padre questiona sua fé, simbolizando suas visões de mundo e preconceitos. Ele deixaria seu amor de lado, por suas crenças, ou cederia ao sentimento? A resposta para tudo isso parece ser escolhida a dedo para quebrar corações dos dois lados, encerrando a série com uma cena tão sensível quanto genial. Há sugestões desse final que não sei se só não consigo decifrar ou aceitar as respostas. É sugerido que o amor de Fleabag vai para o passado, com a estátua simbolizando as memórias da mãe, ou ela move em frente, nos abandonando e superando a perda? Um soa muito mais conveniente, mas o outro, bem mais provável.
Enfim, temos a relação mais importante da série, talvez de toda série na verdade, da protagonista e da audiência. Waller-Bridge nos coloca junto com os outros personagens, a audiência é uma personagem relevante para a Fleabag, para quem ela também mente, cria personas e esconde coisas por medo de ser julgada. Particularmente em TV, a gente volta semanalmente e anualmente para ver o novo episódio, não por envolvimento na história – isso carregaria alguns episódios com ganchos, talvez – mas pelos personagens. A gente se importa com eles e sim, os julga. As quebras da quarta parede de Fleabag soam como alguns dos momentos mais honestos e íntimos da personagem, mas a gente descobre que, muito pelo contrário, não conseguimos ajudá-la e fazer com que se abrisse. Coisa que o Padre consegue na brilhante cena da cabine de confissão, no qual ela revela seus mais íntimos medos e desejos, e só aí ele também a aceita. Ela usa esse recurso mais como um método para se distrair dos seus problemas do que para se abrir a eles, e o nosso papel como audiência é entender e analisá-los.
Ver nossa desconfortável e inconveniente protagonista passeando pelo elenco de personagens da série, indecisa entre conquistar ou quebrar corações (os nossos e os deles), se encontrando e aceitando que na verdade ela não passa de alguém… normal. Talvez nem mereceria uma audiência, mas ficamos felizes que ela tem. Aprendendo que os erros dela não são exceção e sim, a regra. Todos os personagens da série erram. Todos os espectadores também. Porque afinal, para isso servem as borrachas nas pontas de lápis, não?
Especialista em defender Star Wars: Os Últimos Jedi contra os haters. Fã de Twin Peaks e Beatles, é profissional em assistir filmes e escrevia resenhas no Letterboxd nas horas vagas. Aspirante a cineasta, mas enquanto isso não acontece continua exercendo sua cinefilia, um filme de cada vez.