LEIA MAIS MULHERES | Americanah – A questão racial em perspectiva

Não sou boa em cumprir listas de leituras. A literatura, na minha vida, é muito influenciada pelo contexto pessoal, pelo momento, de forma mais sensitiva, quase que de acordo com a necessidade. Por isso, não importa quantas vezes eu faça uma lista, dificilmente eu a sigo com rigor, vez que surge uma vontade aqui, um querer ali, que acaba se encaixando com uma nova leitura. No entanto, ao anotar os livros já lidos nesse ano, percebi, com muito entusiasmo, que, sem planejar, li um número considerável de autoras mulheres – e isso é muito bom!

Tal fato se deu provavelmente porque eu sigo as pessoas certas nas redes sociais, ou porque faço as buscas que me levam a esse caminho interessante, uma vez que o mercado editorial sempre foi dominado por homens – brancos e que historicamente as mulheres tiveram tolhidas as suas oportunidades e, sobretudo, a sua visibilidade no mundo literário. Assim, pensei em unir a feliz percepção de que eu estava indo contra a corrente, mesmo que de forma irrefletida, à inspiração das já existentes campanhas e clubes literários (vide Leia Mulheres) e trazer para este espaço dicas de livros escritos por mulheres, a fim de ampliar o acesso a obras tão incríveis e, algumas vezes, pouco lidas.

Assim, o LEIA MAIS MULHERES começa com o sensacional Americanah, publicado no Brasil em 2014 pela Companhia das Letras, foi escrito por Chimamanda Ngozi Adichie, nigeriana que ficou mundialmente conhecida após o seu discurso O perigo das histórias únicas no TED Talks de 2009, mas que virou uma verdadeira febre após o discurso feito em 2012, “Sejamos todos feministas”. Com mais de 5 milhões de visualizações no Youtube, tornou-se livro homônimo, com trechos utilizados, inclusive, pela Beyoncé em sua música Flawless.

Americanah conta a história de Ifemelu, vinda de uma família que chamaríamos de classe média baixa no Brasil, inicialmente adolescente nos anos 90 de uma Nigéria ainda em adaptação pós-colonial, com uma economia frágil, socialmente desigual, em meio à crise no sistema educacional e à instabilidade política, e tem como plano de fundo sua história de um primeiro amor conturbado com Obinze. Filho de uma professora universitária viúva, o jovem é amante da literatura e admirador de toda cultura e costumes vindos dos Estados Unidos – visto por ele como um sonho distante.

Mas, longe de ser um livro sobre uma história de amor. Em um contexto de greves gerais e paralisação do ensino superior, a protagonista tem a “oportunidade” de estudar em uma universidade norte-americana, utilizando uma bolsa de estudos parcial e um visto provisório. Neste novo contexto, Ifemelu se vê em meio a uma cultura extremamente diversa, na situação vulnerável de mulher, negra e imigrante, sendo os dois últimos conceitos completamente alheios à sua realidade.

Neste ponto, Chimamanda nos ensina que o conceito de racismo é inexistente na Nigéria, o que faz a personagem se questionar constantemente acerca dos discursos e das lutas dos negros norte-americanos e se deparar com a discriminação racial em todas as suas formas, desde a segregação explícita e implícita ao racismo institucional, racismo estrutural, à desigualdade social e de acesso à educação e ao mercado do trabalho. A maturação de todas as suas experiências, dentre as quais algumas traumáticas que mudam o rumo da sua vida, leva à criação de um blog no qual faz textos com as impressões de uma negra não americana em um país racista e dividido, que repercute de forma relevante na sua vida profissional, pessoal e financeira (a ausência de opressão pela raça na Nigéria é percebida em seu primeiro – e excelente – romance Hibisco Roxo, que traz à tona diversas submissões, entre homem e mulher, rico e pobre, cristãos e “pagãos”, colonizados e colonizadores, mas não aborda a questão da raça, uma vez que ela é inexistente naquele ambiente).

De uma forma alternada, a autora nos leva a Obinze, que se frustra com a negativa do tão sonhado visto norte-americano e se torna mais um dos milhares imigrantes ilegais em Londres, o que nos deixa à vista a forte xenofobia por ele sofrida. Além de todas as questões mencionadas, a autora ainda traz à tona assuntos como bullying escolar, depressão, suicídio, além de nos levar de volta a uma Nigéria vinte anos mais moderna, tomada pelos costumes globalizados, com uma economia mais madura, marcada pelo surgimento de novas classes sociais, inclusive uma classe média com maior poder de consumo e pouca educação (notam semelhanças?).

A escolha dessa leitura teve muito a ver com a escrita fluida e direta de Chimamanda, que sempre nos ensina, sem rodeios, sobre raça, feminismo, protagonismo, desigualdade de classes e nos faz conhecer a riqueza de uma cultura ancestral, por meio de personagens com os quais nos apegamos e nos familiarizamos. Contudo, infelizmente, ela também casou com um momento crítico no Brasil de demonstrações diárias de racismo nas suas formas mais violentas, explícitas e desmascaradas. Por tudo isso, acho oportuno lhes deixar um trecho do livro que é extremamente próximo e condizente com os últimos acontecimentos do país:

(…) Porque é claro que todos nós temos preconceitos (não suporto nem alguns dos meus parentes de sangue, uma gente ávida e egoísta), mas o racismo tem a ver com o poder de um grupo de pessoas e, nos Estados Unidos, são os brancos que têm esse poder. Como? Bem, os brancos não são tratados como merda nos bairros afro-americanos de classe alta, não veem os bancos lhes recusarem empréstimos ou hipotecas precisamente por serem brancos, os júris negros não dão penas mais longas para criminosos brancos do que para os negros que cometeram o mesmo crime, os policiais negros não param os brancos apenas por estarem dirigindo um carro, as empresas negras não escolhem não contratar alguém porque seu nome soa como de uma pessoa branca, os professores negros não dizem às crianças brancas que elas não são inteligentes o suficiente para serem médicas, os políticos negros não tentam fazer alguns truques para reduzir o poder de veto dos brancos através da manipulação dos distritos eleitorais, e as agencias publicitarias não dizem que não podem usar modelos brancas para anunciar produtos glamurosos porque elas não são consideradas “aspiracionais” pelo “mainstream”. p. 353