Coisa Mais Linda – Empoderamento forte sobressai ao tratamento inicialmente superficial

A história começa em 1959, numa ensolarada Rio de Janeiro, tão bela e artificial que nem parece real. É neste ponto que começamos a acompanhar a jornada de Maria Luiza (Maria Casavedall), uma paulista recém-chegada que vem atrás do marido, que andava sumido há semanas em terras cariocas. Este é o começo de Coisa Mais Linda, a mais nova produção nacional da Netflix, que chega cheia de pompa e com muito a dizer sobre o universo feminino numa trama que mistura drama, romance e muita Bossa Nova.

A série é criada por Heather Roth e Giuliano Cedroni e é focada em quatro mulheres, cada uma com suas qualidades e personalidades que as tornam particularmente interessantes e com pensamento bem à frente de seu tempo, a primeira é Maria Luiza ou simplesmente Malú, filha de um fazendeiro e grande produtor de café de São Paulo e casada com Pedro com quem tem um filho pequeno. Depois vem Adélia (Pathy Dejesus), negra, batalhadora e que vive dando duro para criar sua filha pequena e tem a vida transformada quando conhece Malú. Ainda temos a encantadora, e com dom da música, Lígia Soares (Fernanda Vasconcelos), casada com Augusto Soares (Gustavo Vaz), um aspirante a político e um dos membros de uma das famílias mais influentes da elite carioca. E fechando o quarteto, temos a ousada e independente Thereza Soares (Mel Lisboa), que trabalha numa empresa de conteúdo para o público feminino e é casada com Nelson Soares (Alexandre Cioletti) irmão de Augusto.

Toda essa descrição é importante para entendermos de onde saíram esses personagens e para onde a série nos leva ao longo de seus sete episódios. Ao contrário do que o material de marketing indicava a série não é inteiramente sobre música, ok também é, mas sua mensagem é maior que isso e a parte musical no final das contas faz ponta de luxo dentre toda a trama envolvendo essas quatro mulheres fortes que buscam espaço para brilhar num mundo extremamente machista e em muitos momentos opressor.

Não se engane, o roteiro desenvolvido por Heather e Giuliano, juntamente com usa equipe de roteiristas, consegue de forma eficiente dar voz às mulheres (o ponto forte da série), ao mesmo tempo em que expõe sem medo o sistema patriarcal enraizado na cultura brasileira de uma forma bastante franca e crível emulando muitas vezes situações cruéis e injustas que poderiam ser facilmente retratadas nos dias atuais fazendo assim o expectador refletir bastante sobre o tema.

Ainda assim, a série tenta retratar outras questões como: racismo, intolerância e divisão de classes, porém tudo soa artificial, por não ter um aprofundamento que esses assuntos pedem de uma forma mais objetiva e ainda permanecer na zona de conforto, preferindo apenas mostrar que existe, mas sem dar voz aqueles que sofrem na mão do sistema (isso fica claro e notado durante todos os episódios, quando vemos brancos da elite esbanjando, soltando farpas e indiretas para personagens negros que em sua maioria estão em funções subalternas e sem muito espaço, tirando o núcleo da personagem Adélia é claro), infelizmente ainda a série é escrita vista de cima para baixo (visão da elite rica em relação a pobre) e não de baixo para cima (visão de pessoas simples e pobres em relação aos ricos).

Em uma análise sobre os episódios em si, começamos pelo piloto “Bem Vindo ao Rio” (1×01), e devo confessar que apesar da parte técnica ser impecável, ambientação, figurino, fotografia e trilha sonora estarem impecáveis, achei que o roteiro falhou em deixar uma boa primeira impressão. A narrativa consegue apresentar bem Malu como personagem central da trama e vai introduzindo o restante do quarteto principal aos poucos, desta forma conhecemos bem a realidade de cada uma muito bem até o fim do episódio, porém tudo soa meio lúdico, tão lúdico, que parece que estamos vendo uma história de fantasia ambientada num Rio que parece não existir na vida real, ficou parecendo um cartão de visitas para gringo ver, onde até o morro parece bonito demais para considerar tudo aquilo real.

Quando todo esse entusiasmo passa e a série começa a se assentar nos dois episódios seguintes, vemos finalmente a trama andar de uma forma mais envolvente e interessante. Coisa Mais Linda é realmente boa quando foca no desenvolvimento de suas protagonistas e em seus sonhos progressistas, no episódio “Garotas Não São Bem-Vindas” (1×02) vemos Malu lidando com uma nova realidade e um sonho de abrir um bar contrariando a família e sua própria realidade numa busca pela própria voz dentro da sociedade, este ponto de partida se torna a espinha dorsal da temporada, unindo assim de uma forma bem esperta a trama de Adélia, Thereza e Lígia.

Um dos pontos que faz Coisa Mais Linda ser uma série que vale a pena acompanhar é seu elenco, ainda que não tenha muita certeza se Maria Casadevall seja realmente boa no papel de Malu (em certos momentos você percebe que ela não consegue ser muito natural em cena, principalmente em grandes discursos que a personagem faz em determinados momentos), ainda assim você sente uma melhora constante ao longo dos episódios. Pathy Dejesus para mim é uma surpresa, sua Adélia é de longe a que tem o arco mais interessante nos episódios iniciais, apesar de não gostar de ela perder espaço nos últimos episódios, mesmo assim a atriz tem boas cenas dramáticas e sua personagem tem o tom certo.

Outra atriz que gostei bastante foi Mel Lisboa no papel de Thereza, ela representa bem a mulher que sabe aproveitar as oportunidades cavando seu próprio espaço aos poucos e vivendo a vida intensamente com um marido que compartilha da mesma visão, a personagem talvez seja o maior exemplo do que iria se tornar a mulher moderna dos dias de hoje. Fernanda Vasconcelos é uma personagem interessante, representa a mulher presa a valores, mas que anseia por se libertar e viver de música, sua Lídia mistura um tom de delicadeza e força que a atriz dominou bem.

Algumas surpresas no elenco coadjuvante também chamaram atenção, Thaila Ayala, apesar de ter pouco tempo de tela, deixa uma ótima impressão como Helô Albuquerque que espero que ela entre para o elenco regular, sua personagem pode render muito em futuras temporadas. Leandro Lima como Chico Carvalho e Ícaro Silva como Capitão, representam bem uma boemia carioca em formação em boas atuações, assim como Gustavo Vaz e Gustavo Machado que também fazem bons trabalhos.

No geral Coisa Mais Linda tem mais acertos que defeitos, explora muito bem a qualidade de seus personagens e ganha quando foca nas questões relevantes sobre o espaço da mulher na sociedade, isso fica nítido nos episódios “Águas de Março” (1×03) e “Os Sonhadores” (1×04). A série consegue prender a atenção e usa ganchos com destreza, como pode ser visto no ótimo episódio “Consequências” (1×05), além de mostrar que não é apenas uma vitrine, mas uma série que dá espaço para discussões importantes como aborto, abuso e outras questões importantes exaltando a força feminina e o quão é importante desconstruir padrões antigos e arcaicos, principalmente aqueles que visam reduzir o papel da mulher, como fica claro no consistente “Desapego” (1×06).

Em seu final de temporada, Coisa Mais Linda já esta consolidada e mais pé no chão, deixando de lado a superficialidade do piloto e se tornando uma série de drama nacional de qualidade. Ainda que tenha seus defeitos e seus clichês, a série mostra que tem algo mais, é claro que falta abrir mais espaço para algumas questões (principalmente raciais, tem espaço para as outras minorias nesta série), mas em seu cerne principal, que é a exaltação do empoderamento feminino, o seriado é simplesmente impecável, e quanto mais o quarteto compartilha e se une, melhor a trama fica e mais rica ela se torna. Em “Fantasmas do Natal Passado” (1×07), a série fecha sua temporada com saldo positivo e com um gancho que deixa um caminho interessante a ser explorado no futuro.

Coisa Mais Linda é um acerto da Netflix em relação ao conteúdo nacional, com um elenco consistente, uma trama sólida e uma produção caprichada, a série apresenta uma primeira temporada que apesar do início aquém e exageradamente lúdico, consegue crescer aos poucos focando nas questões femininas, e consegue se elevar, quando sai das amarras da fórmula de “enlatado americano” e tenta encontrar sua própria voz dando rosto ao movimento feminino nacional através de um drama bem consistente regado a muita música e ótimas atuações.