“Você tá pronta pra isso?”, pergunta o confiante e carismático Fonny (Stephan James), para a insegura e esperançosa Tish (KiKi Layne). É a primeira frase que o espectador ouve em Se a Rua Beale Falasse (If Beale Street Could Talk, 2018), com uma pergunta direcionada, tanto para a personagem quanto para a audiência. E qualquer cineasta corajoso o bastante para começar seu filme com uma frase dessas tem a minha atenção. Ele tem que ser muito presunçoso ou muito confiante no seu projeto. Talvez os dois. Mas em se tratando de Barry Jenkins, diretor de Moonlight: Sob a Luz do Luar (Moonlight, 2016), não surpreende que seja esse último. E essa confiança, com certeza, vem da paixão que ele investiu no filme.
Pouco depois da abertura, Fonny é preso ao ser acusado de estuprar uma mulher que ele jura não conhecer. Tish vai visitá-lo para revelar a novidade: ele vai ser pai. Enquanto vemos o casal lidar com os problemas do agora, temos flashbacks da vida amorosa dos dois no passado. Jenkins dá foco para esse contraste como o gancho do filme. Temos momentos lindos, memórias de amor capturadas com a graciosa fotografia do James Laxton, as cores primárias foscas fortes dos anos 70, vermelhos e amarelos calorosos. Planos abertos e longos. A maravilhosa trilha sonora do Nicholas Britell enchendo cada segundo de emoção. Cenas íntimas, filmadas com uma delicadeza que me deixava desconfortável as vezes, como se eu não devesse estar presenciando esse momento tão pessoal entre essas duas pessoas. Isso briga com o outro lado do filme, da tragédia da vida afro-americana. Preso injustamente, separado do resto do mundo por um pedaço de vidro, enquanto, do lado de fora, os outros personagens tentam tirá-lo da cadeia. Câmeras e ambientes fechados, sem perder as cores setentistas, mas restringindo-as metodicamente. A trilha passa de violinos quentes e jazz sensível, pra harmonias monotônicas sufocantes.
O arco do Fonny é visto em vislumbres. Nunca o seguimos pra dentro de sua cela. Sempre o vemos por vidro. “Eu espero que ninguém nunca tenha que ver alguém que ama por vidro” diz Tish. É doloroso ver a separação dos dois pelo olhar de cada um deles. Se quando encontramos Fonny pela primeira vez ele era confiante, em uma das últimas vezes que o vemos sentimos seu medo e desespero. Aquele lugar quebrou sua personalidade, e é assustador ver isso e pensar que é uma realidade até hoje. Vemos a mudança de Tish quase que como um contra-arco ao dele. Ela perde qualquer esperança, mas é bem mais segura que antes e passa um pouco disso para ele. “Eu entendo o que você tá passando, porque eu estou com você”, diz ela com tal determinação que seria difícil não acreditar.
Isso contrasta com o medo palpável de Tish ao contar para sua mãe, Sharon (Regina King) sobre sua gravidez no início do filme. A voz da excelente estreante KiKi Lane treme entregando o diálogo “Mãe… Eu tenho que te falar uma coisa.”, e do outro lado temos uma resposta de uma doce mas firme Regina King. Conhecemos a família Rivers numa cena de aceitação e conforto. Logo depois conhecemos a família de Fonny, os Hunt, num cenário bem diferente. As reações são quase contrárias e temos uma intensa discussão entre as duas famílias. Os diálogos de Jenkins são obscuramente engraçados, mas não deixam de ser tensos e dramáticos. A única vez que vemos a família Hunt é nessa cena, tirando Frank (Michael Beach), o pai de Fonny. Ele e Joseph (Colman Domingo), pai de Tish, vão atrás de outros meios pra tirar o filho de Frank da cadeia.
Se a Rua Beale Falasse é uma daquelas raras experiências que te manipula com tanta classe que os sentimentos são reais. Eles vêm de um lugar sincero no coração do artista. É um melodrama perfeito em execução. As abstrações de Jenkins quanto ao romance, contrastadas com a sufocante trama do presente, me levaram de inocentes sorrisos genuínos a engolir seco. Era difícil respirar.
“Todos os negros nascidos na América, nasceram na Rua Beale, seja em Jackson, Mississipi ou no Harlem, Nova Iorque. A Rua Beale é nosso legado.”, frase de James Baldwin, autor do livro homônimo que o filme adapta. Baldwin vê a Rua Beale como representação de todo lugar com histórias afro-americanas para contar. A escolha de Jenkins de abrir o filme com essa frase é brilhante. Ele usa Se a Rua Beale Falasse como um microcosmo metafórico para a vida do negro no mundo atual. Preso sistematicamente e injustamente, esperando a liberdade. Separado dos seus sonhos, procurando justiça, mas sempre encontrando portas fechadas. E, ao fim, a agridoce esperança de liberdade. O perverso racismo insiste em não morrer, é o que os artistas quiseram dizer com a obra. Mostrar que uma história de quase 50 anos atrás continua tão atual, é frustrante. Resta ouvir e repassar as histórias, esperando por mudanças. Se a rua Beale falasse, ela contaria histórias como Pass Over (2018), Pantera Negra (Black Panther, 2018), Infiltrado na Klan (BlacKkKlansman, 2018) Ponto Cego (Blindspotting, 2018) e Se a Rua Beale Falasse. Quem diria que esses 2.9 quilômetros de rua em Memphis tem tanta história pra contar. Histórias que inspiram empatia e mudança. A resposta pra pergunta da abertura do texto? “Eu nunca estive tão pronta pra algo na minha vida.”
Especialista em defender Star Wars: Os Últimos Jedi contra os haters. Fã de Twin Peaks e Beatles, é profissional em assistir filmes e escrevia resenhas no Letterboxd nas horas vagas. Aspirante a cineasta, mas enquanto isso não acontece continua exercendo sua cinefilia, um filme de cada vez.