Green Book: O Guia – Uma jornada incompleta e tortuosa

Tudo é uma questão de contexto. Em 1962, Tony Lip (Viggo Mortensen) um italiano fanfarrão que ganhava vida trabalhando numa discoteca, vê a mesma fechar as portas. Na busca por um novo emprego, Lip conhece um pianista e quer contratá-lo para uma turnê pelas cidades do sul dos EUA. Uma relação que começa cheia de conflitos e se torna uma amizade. Para quem lê apenas a sinopse de Green Book: O Guia (Green Book, 2018), acha que é apenas uma grande história de amizade entre duas pessoas, porém o longa dirigido por Peter Farrelly, de Quem Vai Ficar Com Mary? (There’s Something About Mary, 1998), tem várias outras questões raciais e sociais trabalhadas em sua narrativa e é neste contexto que as ideias acabam se perdendo e não tem uma finalidade clara.
O filme é baseado em fatos, contando a história de Tony Vallelonga e o famoso pianista Donald Walbridge Shirley, porém o roteiro escrito por Nick Vallelonga (filho na vida real de Tony), Brian Currie e o próprio Peter Farrelly coloca toda a história sobre o ponto de vista de Tony, deixando Shirley como coadjuvante (mesmo dividindo bastante tempo de tela com o protagonista), e é neste momento que a história perde a chance de ser grande e se torna apenas a jornada comum com questões muito sérias sendo trabalhadas de forma superficial apenas para redimir um personagem (Tony).
O roteiro mostra Tony como o típico estereótipo italiano machão, com jeito malandro, pai de família, porém cheio de preconceitos reforçado pelas pessoas ao seu redor e que pode ser testemunhado pelo público nos primeiros minutos da trama. Em contrapartida temos Dr. Shirley ((Mahershala Ali), negro, pianista, famoso, consagrado, sofisticado e cheio de classe que busca se inserir num espaço predominantemente dominado por pessoas brancas e ricas num EUA segregado que ainda lutava para instaurar os direitos civis dos negros. A narrativa consegue transformar muito bem a oposição e as diferenças entre os dois em algo positivo, uma amizade realmente, que cresce na medida em que a viagem vai progredindo, esse é de longe um dos pontos mais positivos do filme, porém isso só funciona exatamente por causa de sua dupla principal.
Talvez o segredo da aceitação de Green Book, seja por causa das atuações bastante consistentes de Viggo Mortensen e Mahershala Ali, ambos atores dominam seus papéis e isso cria um vínculo imediato com quem assiste. Tony vivido por Mortensen poderia ser um típico escroto sem escrúpulos, porém na mão do ator que segura bem às pontas com seu carisma, o personagem encontra o equilíbrio para se tornar aquele típico sujeito “truculento com coração”. Porém o longa não seria nada sem a presença avassaladora de Ali em cena, que transforma Dr. Shirley num personagem complexo e cheio de conflitos internos que mesmo limitado pela tentativa irritante do roteiro coloca-lo como escada para Tony brilhar em cena, consegue brilhar em diversos momentos trazendo aquela emoção genuína.
O que nos leva a crer que Green Book seria um grande filme se passasse pelo ponto de vista de Shirley e não Tony. Ao colocar Vallelonga no centro da trama o roteiro se limita a uma perspectiva, a um ponto de vista e todas as questões de preconceito, racismo vivido por Shirley e levantadas pelo enredo são tratadas de forma superficial ou parecem engessadas, sem nenhum aprofundamento que leve a uma autocrítica, que, aliás, falta muito no personagem vivido por Viggo e outros personagens coadjuvantes na trama. Talvez o grande erro de Green Book seja querer levantar a bandeira para falar sobre preconceito e outra de que as pessoas podem mudar ao enxergar certos conflitos através de outro ponto de vista, porém sem ter a sutileza ou a eficácia de mostrar que seu personagem principal que vive esses momentos de perto realmente entendeu tudo que ele testemunhou em relação ao que acontece com Dr. Shirley durante a viagem dos dois, algo que o próprio roteiro deixa bem vago, principalmente no terceiro ato.
No final das contas Green Book – O Guia tem uma embalagem bonita, é esperto o bastante para conquistar seu público pela dramaticidade, trata temas importantes, possui um roteiro que tem uma estrutura potencialmente forte para trabalhar diversas questões relevantes, mas que soa muito gratuito no final das contas, sem falar que é piegas e não consegue fechar sua história de forma satisfatória. É nesse ponto que entra as atuações de Ali e Viggo, ambas seguram bastante um filme que, se tem algum mérito, é por causa deles, é claro que a produção é caprichada e também serve como outro ponto positivo, isso não dá para negar, porém falta tato a direção e uma vontade de realmente querer dizer algo importante sobre questões raciais que até Tony Vallelonga parece não ter entendido o que viveu e presenciou nesta jornada, que no final das contas soa um tanto incompleta.