PéPequeno (Smallfoot, 2018) é o mais novo filme de animação do estúdio Warner Animation Group. O roteiro do filme é adaptado do livro Yeti Tracks (sem publicação no Brasil), de Sergio Pablos e dirigido por Karey Kirkpatrick. O filme conta a história de Migo um Yeti (também conhecido como “Pé-Grande” ou “Abominável Homem das Neves” aqui em terras brasileiras) que após encontrar um ser humano, tenta provar para seus iguais que os “Pés-Pequenos” realmente existem. E é assim, partindo dessa simples premissa, que o filme dá uma verdadeira aula sobre civilidade, democracia e empatia.
De cara, a primeira impressão que tive com o filme foi reparar na animação fluida e identidade visual única. O filme aposta numa paleta de cores fria, sem muitas cores vibrantes, para reforçar o clima no cenário principal onde o filme acontece, o topo de uma montanha gelada. No entanto, por várias vezes, o filme usa uma iluminação bem colocada e vibrante, certeira para exprimir os sentimentos que estão rolando nas cenas. Por exemplo, quando está acontecendo uma cena de tensão, o filme usa a iluminação vermelha para dar o tom de urgência, perigo; quando a cena é mais alegre e musical, aposta num amarelo bem vibrante.
E por falar em musical, o filme possui músicas divertidas e alegres, mas com letras não muito marcantes. Destaco a dublagem e a adaptação das músicas para o português que souberam captar bem a essência dos sentimentos que sondavam as cenas. Também na categoria dublagem, o filme vai muito bem na adaptação para o português. A adaptação e dublagem ficou por conta do estúdio Delart, responsável pelas ótimas dublagens de diversos filmes ao longo desses anos.
Mas é no roteiro que está a força de PéPequeno. A trama do filme é bem mais profunda do que parece e me pegou desprevenido, uma vez que eu esperava apenas mais uma animação bobinha pra fazer criança rir. O filme baseia-se na construção e desconstrução de dois princípios básicos: “a verdade acima de tudo” e “a mentira que protege”. Explico.
O protagonista vive em uma sociedade “superprotetora” de Yetis que vivem sob a ordem das “pedras”, um conjunto de regras impostas pelos chefes ancestrais que fazem com que a sociedade viva bem e em harmonia. Essas pedras funcionam como leis absolutas: tudo o que está escrito na pedra é a verdade e não acreditar nas pedras é crime grave, passível de punições severas. É baseado no medo de não contrariar a “lei das pedras” que toda sociedade é estimulada a não pensar muito sobre isso e ir trabalhar para esquecer eventuais questionamentos que surjam. Por esse motivo, os Yetis acreditam cegamente em diversas superstições e são extremamente apavorados com qualquer coisa que eventualmente aconteça que não esteja previsto pelas pedras. É nesse meio que o protagonista se encontra. Por um acaso, Migo presencia um acidente de avião e acaba encontrando um humano, pondo à prova a veracidade das pedras, já que as mesmas dizem que humanos não existem.
A defesa de sua versão da história faz com que Migo seja expulso da vila onde mora. O personagem principal acaba sendo encontrado por um grupo de outros Yetis que acreditam nele e que possuem evidências de que Migo está certo. Então, a trama do filme se concentra na busca pelo “PéPequeno”.
Em sua busca, Migo descobre que o mundo é muito mais do que as pedras diziam. Os humanos, tão demonizados pelas pedras, são criaturinhas ‘fofas’ vivendo uma vida comum. Vários acontecimentos que ocorriam por motivos explicados nas pedras (como o nascer do sol, que de acordo com as pedras só poderia acontecer se o sino fosse tocado na hora exata do dia) na verdade tinham outros motivos. Então, Migo descobre a verdade derradeira, as pedras estavam mentindo. Sabendo dessa nova informação, o protagonista resolve trazer para a vila que morava: as pedras são mentirosas e todo mundo é manipulado por elas.
E foi aí que o filme me ganhou. O líder da vila manipulava seus moradores com INFORMAÇÃO. Incentivando os moradores a não questionar nada e a aceitar tudo que viesse das pedras, o povo era facilmente cego pra realidade e vivia suas vidas normalmente, dentro das limitações da vila.
Porém, há um motivo pra essa manipulação acontecer (e é daí que vem o “mentira que protege”). E é aí que o filme estabelece um dilema bem legal: a população normal deve saber de TODAS as informações do mundo que a cerca? Até que ponto o domínio da informação pela população é benéfico?
É nesse dilema que PéPequeno ensina valiosas lições para a criançada: 1) por mais dura que a realidade seja, prefira a realidade sem distorções, 2) tenha pensamento crítico sobre as informações que recebe e 3) questione de forma ponderada as figuras de poder. Levei meus irmãos menores para ver esse filme e na volta pra casa o papo foi sobre essas lições. E até meu irmão mais novo (9 anos de idade) conseguiu pegar a mensagem e disse que teria a mesma atitude que o protagonista do filme!
Pé Pequeno consegue ser um filme divertido, engraçado bonito e que ensina as crianças (e aos adultos também) sobre manipulação de informações e pensamento crítico. Vale ver com a criançada do lado e ter uma conversa sobre isso com eles após o filme.
Divide seu tempo entre ser um caçador de cartas Clow e um cientista nas horas vagas. Não é muito de assistir filmes pois acredita que os mangás não se lerão sozinhos. Canta todas as músicas da dupla Sandy & Júnior e dança todas as coreografias do Backstreet Boys quando está bêbado. Quando está sóbrio também.