Os filmes dos X-Men podem ter sido a primeira forma live action de adaptação de quadrinhos que a maioria experimentou, mas nem de longe chegam a ser minha favorita. Talvez seja o elenco majoritariamente branco, os personagens todos héteros (até os canônicamente LGBT nos quadrinhos) ou como eles fizeram quase todos os filmes serem sobre o Wolverine. A linha temporal também está aqui listada como um problema, especialmente ao ponto onde a própria produtora começou a debochar disso (Deadpool). As adaptações dos X-Men muito falhavam em retratar a alma que deu origem ao grupo marginalizado que frequentemente lutava contra o preconceito, isso não parecia mudar e com o anúncio da nova série do FX, The Gifted (2017 -) nada dava esperanças que fosse seguir uma outra direção.
Quando anunciada, a série The Gifted (‘Os Abençoados’, pois há quem veja mutantes como pessoas abençoadas com dons em vez de amaldiçoados e esse discurso se repercute muito por todas as mídias) dizia que iria se focar nos Strucker. Reconhece esse nome? Strucker é o nome do vilão do início do filme Vingadores: Era de Ultron (Avengers: Age of Ultron, 2015), que fazia parte da organização nazista chamada HYDRA e fez experimentos que deram origem ao Mercúrio e à Feiticeira Escarlate. Minha indignação pela Marvel e pela FOX estarem dando uma série para uma família com descendência nazista quando havia tanto no universo mutante a se explorar já nasceu ali e eu fui desde já rejeitando a ideia da série. Com o anúncio da equipe criativa e de que haveriam outros mutantes (alguns mais conhecidos e amados do que outros) eu comecei a criar uma pequena esperança.
2 de Outubro de 2017 a série estreou. No primeiro episódio somos apresentados à Resistência Mutante, que vivem o legado deixado pelos X-Men após o grupo ter sumido. Tem direito a um toque de celular com a música da abertura do desenho dos anos 90, assim como estabelecer bem o fato de os X-Men terem existido nessa linha temporal e que há muito não se via eles, assim como a Irmandade. Com o passar da temporada vamos descobrindo que não existiam só esses dois lados para os mutantes tomarem, haviam outras opções. As relações desenvolvidas ao longo da temporada entre os mutantes da Resistência e os demais personagens, ou mesmo entre si, parecem bem palpáveis. A série tem como uma das protagonistas Lorna Dane (Emma Dumont), que possui poderes sobre o magnetismo e um cabelo de cor verde. A sua prisão, a separando do seu namorado Eclipse/Marco (Sean Teale) a leva a descobrir estar grávida e essa gravidez é um ótimo fio condutor para os diversos enredos pela qual a personagem passa.
Voltando aos Strucker, o enredo da família consiste na descoberta de que os dois filhos do casal – os gêmeos Lauren (Natalie Alyn Lind) e Andy (Percy Hynes White) – são mutantes e passam a ser procurados pelo Serviço Sentinela. Não, não é uma mera coincidência o nome da organização que lida com os mutantes mais perigosos. Os Serviços Sentinela se mostram como uma versão adaptada e bem mais primitiva dos robôs que vemos nos desenhos antigos dos X-Men. Então a família começa a fugir pelo país, e o patriarca, Reed (Stephen Moyer), faz contato com Eclipse e pede ajuda à Resistência para salvar seus filhos de um destino talvez pior do que a morte. A pegadinha está no fato de Reed Strucker ser uma advogado do distrito responsável por muitos casos contra mutantes apreendidos, inclusive o caso de Lorna – os dois inclusive dividem uma ótima cena que faz uma pequena demonstração sobre algo que eventualmente acontece nos episódios seguintes.
Ao longo da temporada a série adapta vários enredos interessantes já feitos nos quadrinhos e nas séries animadas, coisas não vistas antes nos filmes. Lorna toma um destaque bem digno e sua relação com o famoso líder mutante Magneto é perfeitamente explorada. Um dos maiores feitos da série é como ela consegue ser algo bem original mas também se torna uma das adaptações mais fiéis dos mutantes já feita em live action. Como se é abordado toda a questão do preconceito contra mutantes, os problemas vivenciados por simples mutantes apenas por eles serem o que são. O preconceito sofrido pelos mutantes não se relaciona só a uma comunidade ou à outra, é uma forma ampla de representar as dificuldades sofridas.
Toda a série se passa após um evento catastrófico que matou várias pessoas (humanos e mutantes) e desde então todos os mutantes são visto como potenciais ameaças apenas por serem o que são e não por uma possível relação com o acontecimento em particular. As vivências da personagem Clarice Fong, também conhecida como Blink (Jamie Chung) como uma mutantes de aparência não totalmente humana mostram um pouco de todo esse preconceito e o ódio do qual a personagem fora alvo apenas por parecer diferente. Clarice se questiona se realmente ajudar e proteger os humanos é a escolha certa, ou se eles não merecem colher do ódio plantado e sofrerem as consequências de mutantes mais extremistas.
Embora os X-Men sejam um grupo de heróis nos quadrinhos, a muito tempo se abandonou a ideia de seguir a utopia criada por Xavier e tentar combater o ódio dos humanos com flores e é exatamente esse tipo de debate que causa uma fratura na equipe. Afinal, nem todos os mutantes da Resistência concordam que os humanos – ou pelo menos os humanos que lhes causaram tantos males – mereçam uma segunda chance. Ao longo da primeira temporada temos personagens sofrendo lavagem cerebral, personagens sendo mortos e torturados, tudo para que os humanos consigam realizar a sua pesquisa. A introdução dos previamente mencionados Strucker se deu de forma satisfatória, revelando que a família teve no seu passado criminosos sádicos. Todo o poder dos Strucker vem a ser uma interessante adição à história e também uma ótima conexão com o enredo final.
Não é o trabalho de toda série levantar qualquer bandeira, mas a própria escolha de não o fazer termina sendo em si uma forma de se posicionar. Diferente de outros trabalhos feitos com os X-Men, essa série consegue não só abordar temas como preconceito, ódio e fascismo sem parecer forçada e ao mesmo tempo deixar razoavelmente clara a relação daqueles temas com o mundo real. O elenco principal da série tem presenças bem importantes e nem todas elas são brancas, dando um ótimo destaque a personagens como Marcos, Clarice e também Pássaro Trovejante (John Proudstar, interpretado por Blair Redford). O último personagem citado possui uma maior história na série do que já possuiu nos quadrinhos, considerando que fora morto na sua segunda missão junto da segunda formação dos X-Men.
O final da temporada apresenta conexões maiores com todo o universo mutante, tratando do Clube do Inferno e da relação de Lorna com Magneto. Também há uma divisão dentro da Resistência, separando tanto relacionamentos quanto famílias. O desenrolar desta trama, a descoberta de novos grupos mutantes – sejam eles pró ou contra os humanos – se dará a partir da segunda temporada, que estreou no último dia 25 de Setembro nos EUA pelo canal FX.
Cineasta graduade em Cinema e Audiovisual, produtore do coletivo artístico independente Vesic Pis.
Não-binarie, fã de super heróis, de artistas trans, não-bináries e de ver essas pessoas conquistando cada vez mais o espaço. Pisciano com a meta de fazer alguma diferença no mundo.