Na longínqua década de 60 os quadrinhos americanos de super-heróis sofriam o impacto do medo causado pela Guerra Fria e pela “ameaça” comunista. Os gibis foram alvos de várias acusações relacionando-os com má influência para as crianças e um primeiro passo para o mundo das drogas (?), levando o congresso americano a criar até mesmo um selo de aprovação para as publicações que seriam “socialmente aceitas”, enquanto vários outros exemplares eram censurados. Mas mesmo em meio a esta grave crise, ou talvez até mesmo por causa dela, um dos personagens mais revolucionários deste gênero de quadrinhos foi criado. Não se tratava mais de bilionários superinteligentes ou alienígenas bondosos com super poderes, mas de um adolescente comum, com problemas comuns, que ganha poderes, e com eles, grandes responsabilidades. Nascia o Homem-Aranha, criado por Stan Lee e Steve Ditko, que por sua fácil identificação ainda segue como um dos super-heróis mais populares de todos os tempos. A difusão deste tipo de personagem levou, claro, à criação de vários outros super-heróis que tinham problemas reais e que tinha o fato de serem “vigilantes” colocado em cheque como mais um desses problemas, como Demolidor, os mutantes dos X-Men, e até mesmo o Quarteto Fantástico, que apesar de ter sido criado antes do cabeça de teia, teve sua popularidade alavancada pelo sucesso deste.
Visto isso, não é à toa que os primeiros filmes desta nova era dos super-heróis que Hollywood passa atualmente tenham sido adaptações destes personagens “comuns”, X-Men (2000) e Homem-Aranha (Spider-Man, 2002), antecedidos em décadas anteriores exatamente por filmes do alienígena e do bilionário que comentamos aqui em cima. E veja bem, não é que este tipo de super-heróis tenha se tornado o único possível, Homem de Ferro (um bilionário) e Thor (um deus/alienígena), por exemplo, foram criados naquela mesma década de 60 pela mesma editora que criou o Aranha, e fazem tanto sucesso nos cinemas hoje quanto esses super-heróis “de rua”, mas é que estes últimos tem um gostinho especial. É quase como se pudéssemos sentir que nós mesmos poderíamos ter levado aquela picada de aranha radioativa.
E foi pensando nesta possibilidade de identificação que Brad Bird teve – ainda quando o boom de filmes de super-heróis estava começando – a brilhante ideia de mostrar para crianças como seria se dois combatentes do crime com super poderes se casassem e constituíssem uma família, e ainda mais, se essa família vivesse em um mundo onde super-heróis tivessem sido proibidos? Claro que nenhuma dessas ideias era nova de fato (Quarteto Fantástico e Watchmen estão aí pra todo mundo ler), mas o trunfo de Bird foi trazer para esta história a graça e a leveza que apenas uma animação (da Pixar) poderia gerar, e em 2004 foi lançado Os Incríveis (The Incredibles, 2004), onde Bird, que já havia nos presenteado com o excelente O Gigante de Aço (The Iron Giant, 1999), soube mais uma vez misturar drama familiar com uma ótima dose de humor.
14 – longos – anos depois, o filme continua tão bom quanto antes, e as crianças que o tinham visto naquele 2004 agora o revisitam como adultos, apenas para perceberem como ele permanece atual e pertinente, sendo facilmente aproveitado por uma nova geração de crianças (às vezes mais exigente, às vezes mais distraída). Mas estas crianças (tanto as de 12 anos quanto as de 30), estavam sedentas para ver uma continuação das aventuras da Família Pêra (Parr no original) que nos havia sido apresentada com aquele filme. E qual foi nossa alegria quando soubemos que finalmente teríamos esse sonho realizado.
E se em 2004 o jovem Elvio de 14 anos se identificou com os problemas de adolescentes de Flecha e Violeta, hoje o Elvio de 28 anos, ainda sem saber muito bem como funciona a vida adulta, pai de um bebê de quase 2, se transportou de corpo e alma para as vidas de Helena e principalmente Beto. E surpreendentemente quando achei que a emoção viria mais por conta da nostalgia (artigo tão comum no mercado da cultura pop hoje em dia) ela me pega de surpresa e me atinge em cheio no lado familiar, exatamente por aquela velha identificação que Lee e Ditko souberam tão bem utilizar desde os distantes anos 60. E é exatamente aí que está o grande triunfo de Os Incríveis 2 (Incredibles 2, 2018), em saber trabalhar com as possibilidades e relações criadas pelo primeiro filme e levá-las a um próximo passo.
O filme inicia exatamente onde o primeiro havia parado, ou seja, os super-heróis ainda são ilegais e a família Pêra precisa viver contendo a vontade de usar seus poderes para salvar as pessoas e fazer o bem, falhando logo de cara como vimos no final do filme anterior. O incidente com o vilão Escavador acaba colocando os heróis novamente como causadores de destruição ao agirem sem o aval do poder público, e levando ainda mais problemas à família que já estava tendo que morar em um pequeno hotel desde que sua casa havia sido destruída no filme anterior. Mas eis que convenientemente um rico executivo nostálgico pela época em que super-heróis eram permitidos surge com uma plano para colocá-los novamente na legalidade.
Os problemas que surgem deste plano, e depois o surgimento do vilão Hipnotizador, parecem perder a importância e acabam ficando em segundo plano frente à relação entre a própria família ao ter que lidar com tudo aquilo. E mesmo que a sequências de ação possam dar inveja a muitos filmes do gênero lançados nos últimos anos, fazendo com que realmente fiquemos tensos e nos preocupemos com os protagonistas, é a dinâmica entre os cinco membros da família o que mais interessa. A ideia de inverter os papéis do homem e da mulher “de família” levanta questões importantes no debate de igualdade de gênero tão necessário para o público infantil (e adulto também), mesmo que o enredo tenha tocado apenas na ponta de um imenso iceberg. Mas colocar à prova a “masculinidade” de Beto como provedor da casa enquanto Helena sai para trabalhar como super-heroína e as situações advindas disso talvez tenha sido a melhor coisa do filme, já que a trama principal acabe se mostrando meio previsível e batida.
Beto e Helena passam todo o filme questionando a si mesmos e sua própria realidade (o que a Pixar sabe fazer muito bem), ele lidando com a dificuldade de se aceitar num papel que historicamente é relegado ao gênero feminino, cuidar da casa e das crianças (e as sequências com o bebê Zezé são de longe as mais divertidas do filme), enquanto ela precisa lidar com a possibilidade de sair deste papel (o que poderia ter sido muito melhor aproveitado diga-se de passagem), e é interessante perceber que nenhum destes problemas envolve super-poderes.
Trazer ainda mais os aspectos desta humanidade dos personagens, seus problemas reais, alterações de humor durante um jantar em família quando “verdades” inconsequentes são ditas, os problemas amorosos da adolescência e a incapacidade dos pais de saber lidar com isso, as mudanças na matemática, faz de Os Incríveis 2 a continuação que o filme de 2004, o Elvio de 28 anos e as crianças de hoje mereciam. E como em certo momento do filme a maravilhosa Edna Moda diz “poucas coisas são mais heroicas do que ser pais”.
Cineasta e Historiador. Membro da ACECCINE (Associação Cearense de Críticos de Cinema). É viciado em listas, roer as unhas e em assistir mais filmes e séries do que parece ser possível. Tem mais projetos do que tem tempo para concretizá-los. Não curte filmes de dança, mas ama Dirty Dancing. Apaixonado por faroestes, filmes de gângster e distopias.