A nova série da ABC em parceria com a Marvel, Cloak & Dagger (Manto e Adaga, em português) dá vida a personagens menos conhecidos do universo Marvel nos quadrinhos de mesmo nome. Tandy Bowen e Tyrone Johnson, nos quadrinhos, se tornaram super humanos após passarem por experimentos. Os dois são complementos um do outro, tanto quanto a seus poderes quanto à suas narrativas. Enquanto os dois são vigilantes nos quadrinhos, conhecidos por serem letais contra seus inimigos, a série aparentemente trás uma pegada mais real, palpável e juvenil à história dos dois. Com a história se passando em Nova Orleans os personagens tem o seu próprio espaço para terem sua história contada, longe de toda a bagunça acontecendo no resto do Universo Cinematográfico da Marvel.
Tandy Bowen e Tyrone Johnson tiveram a sua estréia em quadrinhos na edição #64 de ‘Peter Parker, O Espetacular Homem Aranha’. Foram criados por Bill Mantlo e Ed Hannigan, o primeiro teve a inspiração para os personagens após uma visita à Ilha Ellis e afirmava que eles encarnavam entre si todo aqueles medos e miséria, fome e necessidade que o assombraram na ilha. De início os dois heróis não costumavam combater inimigos em fantasias e com apelidos vilanescos mas tinham como objetivo a busca dos dois para encerrar completamente o tráfico de drogas e explorar os problemas como vigilantismo. Os dois costumavam ser violentos contra os criminosos a quem combatiam até que Adaga, Tandy, começou a se mostrar mais misericordiosa e eventualmente levou essa ‘luz’ também para Tyrone e o convenceu de que matar não era a resposta.
Luz e trevas. É na base dessa relação antagônica que os dois personagens são construídos em sua narrativa e também aos seus poderes.
O personagem de Tyrone Johnson, interpretado na série por Aubrey Joseph, é um jovem negro de classe média cujos pais são superprotetores. Suas ‘habilidades’ estão relacionadas ao sombrio, ele usa das ‘sombras’ para se teleportar e também é capaz de ver o medo das pessoas. A história de Tyrone gira em torno do que houve no dia em que ele e Tandy ganharam poderes, em como seu irmão perdeu a vida e como esse fato traumatizou Tyrone. Desde então é como se ele não tivesse parado de lutar e é por isso que seu destino começa a necessitar do auxílio e do complemento de Tandy, para que ele veja que continuar lutando não é uma opção. O contexto da história de Tyrone lida com racismo de uma forma nada sutil ou suave, inclusive ressaltando o fato que mesmo com suas atividades criminosas Tandy tem menos chance de ser vista como uma ameaça pela polícia pela cor de sua pele.
Tandy Bowen, interpretada por Olivia Holt, é uma jovem fugitiva que aplica golpes a meninos ricos para roubar seus bens ao lado de seu namorado, Liam. Diferente dos quadrinhos, onde a jovem fugiu de uma vida onde ela tinha tudo porque sua mãe modelo não tinha tempo para ela, aqui ela mantém sua vida criminosa por ter saído de uma casa onde sua mãe é viciada em remédios e sempre está trocando de parceiros acreditando que cada um deles tem a resposta de seus problemas. Os problemas da família Bowen em questão estão relacionado à empresa Roxxon, onde o pai de Tandy trabalhava antes do acidente que veio a lhe dar poderes e à Tyrone. É muito ressaltado na série o fato de Tandy ter o costume de fugir de seus problemas. Os poderes da jovem envolvem a criação de ‘adagas’ de luz e também a capacidade de ver as esperanças e sonhos das pessoas.
A abordagem que a série trás sobre alguns assuntos importantes como ‘culpa do sobrevivente’, policiais matando jovens negros, abusos sexuais, suicídio e uso de substâncias é bem cuidadosa. Os personagens são bem cientes das suas realidades e dos problemas enfrentados. Ambos foram marcados pelas mortes de entes queridos, talvez as pessoas mais próximas a eles de suas família, e mesmo após anos ainda não foram capazes de superar tais perdas. A forma com que as narrativas fazem com que a presença (algumas vezes, a ausência) de um seja sentida na vida do outro é sutíl de início e vai se potencializando à medida que a história avança. Um tem muito a aprender com o outro e talvez a resposta para seus problemas não esteja apenas na superação do que houve no passado mas sim na resolução destes.
Existe muito simbolismo presente na série, mais evidente durante as cenas onde os personagens são capazes de ver os sonhos ou medos das pessoas. Há muito do universo da série que ainda pode (e provavelmente vai) ser explorado, como toda a forma com que os poderes de Tyrone e Tandy os leva um ao outro desde o começo de tudo.
Romance não é um fato muito necessário quando se trata de dois personagens tão profundos mesmo que os responsáveis pela série tenham confirmado o eventual envolvimento romântico dos protagonistas, mesmo que este romance esteja presente nos quadrinhos.. Vale ressaltar também que a história da série fez mudanças bem severas se tratando de uma adaptação, mudanças para o melhor. Em vez de o jovem negro ser um fugitivo e viver de assaltos, é a jovem menina branca e loira que aplica golpes ao lado de seu namorado para sobreviver. Na série também não temos uma mulher superficial fazendo o papel de Melissa Bowen, a mãe de Tandy (interpretada por Andrea Roth). Apesar do seu vício em remédios, drogas e álcool, Melissa se preocupa com Tandy e com sua família e é exatamente essa preocupação com o nome de sua família que a motiva.
Mesmo com um ritmo um pouco lento, a série termina funcionando à sua proposta – que molda como algo mais novo. Não se trata de uma série sobre super-heróis, mas também não é mais uma série de drama. A abordagem da série é algo novo quando se trata de uma adaptação televisiva de personagens da Marvel, mas é algo que dá muito gosto de se assistir. Tanto a fotografia quanto à trilha sonora da série são pontos altos quando se trata de aproveitar a experiência. À medida que o enredo vai ganhando mais forma se torna cada vez mais difícil não se sentir capturado pela série e criar expectativa para ver Tyrone e Tandy virarem Manto e Adaga, um caminho que pode ser longo mas não tão cansativo.
Cineasta graduade em Cinema e Audiovisual, produtore do coletivo artístico independente Vesic Pis.
Não-binarie, fã de super heróis, de artistas trans, não-bináries e de ver essas pessoas conquistando cada vez mais o espaço. Pisciano com a meta de fazer alguma diferença no mundo.