Em entrevista sobre a estreia de The Handmaid’s Tale (2017 – ) ao The Washigton Post ano passado, Margaret Antwood, autora do livro no qual a série se baseia, disse: “Minha regra para o livro era, eu não coloquei nada que as pessoas já não tivessem feito. E eu acho que a série está seguindo essa regra, não colocando nada que seja criado. Tudo já aconteceu antes.” Esse provavelmente é o principal motivo que me faz gostar tanto dessa série.
Todas as violências contra as mulheres, as pequenas e grandes retiradas de direito, de liberdades, o sistema governamental, retratados na série, já aconteceram de alguma forma na nossa história. Nós já fomos, e ainda somos, estupradas por nossos maridos até que engravidamos e eles dão um tempo até que a criança nasça e tudo comece novamente. Nós não tínhamos direito a voto, a trabalhar, a ter nosso próprio dinheiro. O sobrenome que carregamos é o da linhagem masculina. E isso foi lei por muito tempo. A mulher é conhecida pelo sobrenome do pai, quando casa, pelo do marido e, mesmo quando permanece com algum sobrenome seu, em geral, é o da família do pai. Os sobrenomes que um possível filho do casal vai receber, são os sobrenomes de ambos os avôs. E assim por diante.
Por isso, constrói-se uma relação de distância/aproximação com o universo da série. Não estamos sob um governo fundamentalista/religioso, mas nossa sociedade é a mesma da série antes da guerra acontecer; temos potencial para chegar nesse mesmo sistema. Não somos enforcadas pelo governo por sermos lésbicas, por trairmos nossos companheiros, mas morremos todos os dias nas ruas pelas mãos de homens que sabem que podem fazer isso e ficar impunes. Não nos vestimos todas iguais porque é uma regra, mas queremos nos vestir, nos parecer todas iguais porque alguém colocou na nossa cabeça que nada além disso poderia ser beleza. Cada violência dói porque poderia realmente acontecer com qualquer uma de nós em outro contexto, assim como cada pequena desobediência ao sistema é uma vitória que arrepia, que te faz querer continuar.
The Handmaid’s Tale constrói um mundo distópico com regras muito bem estabelecidas. Penso, às vezes, que roteiristas sentaram com a autora do livro e escreveram mesmo uma constituição para a República de Gilead. Todo o drama, a ação, a tensão que é muito bem construída a cada episódio, está sempre ligado às leis que regem a República pois o Estado aqui rege não só a vida em sociedade, mas as vidas privadas também. Até onde se pode ir? Que punição essa personagem vai receber por ter quebrado essa regra? Vivemos a tensão constante de que nossa personagem preferida está prestes a fazer algo errado e vai ser punida por isso. Ao mesmo tempo, torcemos para que ela quebre alguma lei, torcemos que ela derrube o Estado.
A segunda temporada promete algo bem maior e com mais ação do que foi a primeira. Nesses 3 episódios que saíram, vários elementos foram adicionados como outros lugares fora do bairro onde June mora, uma casta que até então nos era desconhecida e um aprofundamento sobre as relações internacionais da república de Gilead. Vimos, finalmente, como são as Colônias, lugar muito falado e nunca visto na primeira temporada. Além disso, como uma boa série feminista – essa palavra que muita gente teme, mas que só quer dizer a defesa de direitos iguais – a série amplia o debate sobre as opressões, além daquelas específicas sofridas por mulheres e traz um episódio sobre a liberdade de expressão e um sobre intolerância religiosa.
The Handmaid’s Tale prova que dá sim para falar de feminismo dentro de uma narrativa clássica gerando envolvimento de qualquer espectador. Que é possível que sejamos protagonistas e queiramos algo que não seja casar. Que duas personagens possam conversar sobre outros assuntos que não homens. Que sororidade existe. Que ser mãe é difícil. E que é possível sim uma série ser majoritariamente escrita e dirigida por mulheres (na primeira temporada, dos 10 episódios, 8 foram dirigidos por elas e 5 foram escritos), filmada no Canadá, ganhar o Emmy e o Globo de Ouro de melhor série dramática. “Bendito seja o fruto”.
Uma capricorniana Bacharel em Cinema e Audiovisual. Diretora, roteirista, curadora e uma DJ formidável nas horas vagas. Grenda divide seu tempo entre o cinema, o cigarro e o litrão barato. Sabe dar conselhos e sermões como ninguém e dentre todos os seus vícios, o maior deles é a tabela de Excel.