— Esse texto contém spoilers —
O número 7 é rodeado de misticismo, visto por muitos como um algarismo da sorte. Além de ser um número cabalístico, representando a aproximação do Homem com Deus, ele é aritmeticamente singular, pois é o único número que não é múltiplo e nem divisor de nenhum outro algarismo entre 1 e 10. Esse pensamento do número 7 sete ser um número perfeito, matematica e espiritualmente, talvez tenha começado com a numerologia do matemático-filósofo Pitágoras e ganhado força com a expansão do cristianismo e as diversas coincidências entre os pensamentos e realizações humanas, afinal, deus descansou no 7º dia, são 7 cores do arco íris, 7 mares, 7 chakras, 7 metais, 7 maravilhas do mundo, 7 dias da semana, 7 notas musicais, 7 horcruxes, 7 perpétuos, 7 virtudes e 7 pecados capitais.
Desde A Divina Comédia, de Dante Alighieri, a ideia de inserir os pecados capitais nas histórias é bem comum. Eles geralmente são usados mais como conceitos que movem e influenciam as ações de determinados personagens ou acontecimentos da trama, como é o caso do filme Seven: Os Sete Crimes Capitais (Se7en, 1995), da novela brasileira Sete Pecados e, atualmente, do anime The Seven Deadly Sins (Nanatsu no Taizai, 2014 – ?). Porém, as únicas vezes que eu vi essas figuras encarnadas na trama como força motriz ativa, foi no episódio “Os sete magníficos” da terceira temporada de Supernatural (2005 – ?) e, claro, em FullMetal Alchemist: Brotherhood (Hagane no Renkinjutsushi, 2009 – 2010).
A autora, Hiromu Arakawa, fez uma excelente escolha ao utilizar os pecados capitais como vilões na sua história, nomeando-os de homúnculos, criados a partir de um ser original, chamado por eles de Pai. Esse homúnculo original abdica dos seus pecados capitais para que assim ele consiga ser uma existência perfeita, sem erros e depravações, desse modo, alcançando e superando o Altíssimo. Não vou me estender aqui a respeito da retratação de deus em FullMetal Alchemist Brotherhood, pois já escrevi outro texto somente sobre isso (que você pode conferir aqui).
Apesar de ser uma decisão interessante, essa escolha precisa ser trabalhada com cuidado. A partir do momento em que os antagonistas da história são os próprios conceitos de Luxúria, Gula, Preguiça, Ira, Orgulho, Inveja e Ganância, os personagens podem se tornar rasos, previsíveis e genéricos, mas a autora compreende isso e cria vilões complexos, usando a idéia preconcebida do público a respeito dos pecados capitais, para que esses arquétipos sejam apenas a base dos seus personagens, mas não a sua totalidade. Além disso, o balanço de poder entre as vantagens e desvantagens dos personagens é extremamente bem feito pela mangaká. A alquimia pode existir no mundo, mas às pessoas continuam sendo seres humanos relativamente comuns. Então nenhum homúnculo ou alquimista é invencível, todos tem suas fraquezas e limitações, por menores que sejam.
Luxúria é a primeira a morrer, sendo por consequência o homúnculo menos desenvolvido do desenho. É retratada como uma mulher de corpo curvilíneo, seios fartos, sedutora e manipuladora. Tem como a principal habilidade a lâmina suprema, podendo cortar praticamente qualquer coisa com as suas garras. Essa personagem pode ser vista como o clássico arquétipo da mulher fatal e é considerada, pelos protagonistas, a vilã principal no início da história. Inicialmente Luxúria estar no comando de Gula e Inveja faz muito sentido, afinal esse pecado conduz o ser humano aos seus instintos mais primitivos, afundando suas vítimas no prazer e no desejo, fazendo com que seus planos fossem completados com mais facilidade. Por usar sua beleza como trunfo, o fato dela morrer queimada por Roy Mustang, enquanto seus tecidos ficam a mostra falhando em se regenerar a tempo, é bem significativa.
Gula tem uma aparência inofensiva, mas em segundos pode se tornar uma criatura assustadora. Sua habilidade o torna extremamente perigoso. Por ter uma falsa porta da verdade em seu estômago, ele consegue sugar tudo o que quiser, mandando a pessoa ou objeto para uma dimensão paralela aparentemente sem volta. Essa sua habilidade pode representar a fome de poder do Pai, obcecado em se igualar a Deus, mas falhando em replicar a porta da verdade. Apesar de aparentar ser muito poderoso, esse homúnculo tem uma inteligência baixa, agindo muitas vezes como uma criança que obedece ordens sem questionar, só se preocupando em comer por comer. Na quarta temporada, Orgulho devora Gula para se fortalecer, absorvendo a pedra filosofal do irmão e ganhando algumas de suas habilidades, como o olfato aguçado. E aqui temos o mesmo raciocínio que foi aplicado à Luxúria, o pecado da Gula morre devorado.
Particularmente, preguiça é o pecado que mais me representa. No anime, ele tem como único objetivo fazer a trama andar. Ele era o responsável por cavar o gigantesco túnel ao redor do país Amestris, para que o círculo de transmutação do Pai funcionasse. Ele ser designado para essa tarefa faz sentido, pois provavelmente teria preguiça de abandonar o seu trabalho para fazer outra coisa.
O design desse personagem é bem curioso, ele é o homúnculo mais alto e fisicamente mais forte dos sete, fala de forma morosa e tem raciocínio lento, entretanto, sua habilidade principal chega a ser contraditória com a sua essência, ele tem super velocidade. Apesar disso, a caracterização do Preguiça é fascinante, ele tinha potencial para ser um dos homúnculos mais fortes, mas simplesmente tem preguiça de aprender e aprimorar as suas habilidades, afinal, diferente dos outros pecados, o maior mal que um preguiçoso pode fazer é contra si mesmo. Sua morte ocorre pela mãos dos incansáveis Armstrongs, conduzindo-o finalmente ao descanso eterno.
Inveja é o meu homúnculo preferido, no quesito desenvolvimento e conceito de personagem. Tem como habilidade se transformar em qualquer pessoa, imitando a aparência, roupas e voz do alvo, além de conseguir se tornar um lagarto gigante deformado, com todas as almas da sua pedra filosofal à mostra. Apesar disso, no decorrer do anime é revelado que a verdadeira forma do homúnculo, quando este está na sua última vida, é a de um verme minúsculo, inofensivo e patético.
Esse poder ser atribuído a este pecado foi uma sacada genial da autora. Pessoas invejam as conquistas dos outros, as realizações de vida e a felicidade alheia, muitas vezes diminuindo esses acontecimentos para exaltar a si mesmos, acreditando serem melhores e mais dignos do que os demais. O invejoso se alegra com o fracasso de outra pessoa, podendo em alguns casos até demonstrar uma personalidade sociopata, não se contentando mais com o que o outro tem, mas sim querendo ser exatamente o que o outro é. Inveja sempre desprezou a humanidade numa tentativa de negar a inveja que tinha para com os humanos, se transformando em qualquer um, tentando preencher desesperadamente esse vazio, porém, no final ele é apenas um parasita que busca estragar a vida das pessoas para tentar melhorar a sua.
Inveja é o homúnculo mais desprezível e ardiloso. Ele foi o estopim da guerra civil de Ishbal, assassinou o tenente-coronel Hughes, além de sempre usar suas transformações para fomentar conflito entre as pessoas. Depois de ser queimado incontáveis vezes pelas mãos de Roy Mustang, Inveja se vê encurralado, na sua forma de larva. É então que, não podendo mais incitar conflito entre as pessoas e finalmente sendo compreendido por Edward, um humano que ele julga inferior, repleto de frustração Inveja se suicida, resultando em uma das melhores mortes do anime.
Ira tem a aparência de um homem adulto. Ele é o único homúnculo criado a partir de um ser humano vivo. Bradley foi treinado pelo exército, desde criança, para se tornar o líder supremo de Amestris, sendo o seu organismo o único entre os diversos experimentos a aceitar uma pedra filosofal, que é feita a partir de sacrifícios de almas humanas.
Além de ser um ótimo estrategista, ele tem como habilidade o olho supremo, podendo prever os movimentos do inimigo e analisar o ambiente a sua volta, tornando-se praticamente imbatível em combate. Mas, apesar dessas habilidades, o Fuhrer ainda tem um corpo mortal, assim, sendo capaz de envelhecer e sofrer as consequências da velhice, com o seu corpo não sendo tão rápido quanto antigamente, criando então uma limitação para o seu poder. King Bradley sempre aparentava estar calmo na presença das pessoas, suprimindo a sua ira, direcionando ela para os incontáveis conflitos em que o exército estava envolvido, incitando o ódio e a raiva entre os seus aliados e inimigos, fato muito bem demonstrado nos flashbacks da guerra civil da região de Ishval.
Depois de forçar o seu corpo ao máximo, invadindo o quartel general e lutando com Ganância, Ira tem uma morte simbólica pelas mãos do Scar, dando abertura para o golpe final do oponente quando foi cegado pelo sol que saiu de trás da lua, simbólico porque Deus é representado pela união desses dois astros na alquimia e Scar, sendo um personagem religioso, estaria recebendo a ajuda da divina providência. Em seus momentos finais, Ira envelhece, nos dizendo talvez que a raiva nos consome, desgastando nosso corpo e mente até não suportarmos mais.
Então temos Orgulho, que é o pecado com o design que eu mais gosto. No anime, esse é o primeiro homúnculo criado pelo Pai. Sua aparência é de uma criança, inocente e frágil, mas quando se revela, Orgulho mostra-se uma figura manipuladora, cruel e arrogante, sendo respeitado e temido por todos os seus 6 irmãos. Tem como habilidade a manipulação de sombras repletas de olhos e dentes, podendo usá-las para perfurar, prender, morder e vigiar tudo a sua volta.
Apesar disso, seu poder só funciona se o ambiente tiver sombras, sendo inútil em lugares totalmente escuros ou com uma forte luz. No decorrer da história é revelado que o corpo infantil é apenas um recipiente para a verdadeira forma do personagem, conversando muito com a forma do Pai nos flashbacks em Xerxes, quando ele era apenas um homenzinho do frasco. Orgulho ser representado desse jeito e com esses poderes simboliza que apesar do Pai ter obtido uma forma humana, ele se orgulhava de ser um homúnculo, passando para o seu filho até mesmo o sentimento de superioridade para com tudo e todos, mesmo que isso o faça subestimar seus oponentes. Sua morte ocorre pelas mãos de Edward Elric, o protagonista, e nesse momento Orgulho assume a forma de um recém-nascido minúsculo, tornando-se inofensivo, conversando muito com o conceito do personagem, afinal, a pessoa orgulhosa tenta ao máximo parecer algo que não é.
Por fim, Ganância é um dos personagens mais bem trabalhados pela autora. É apresentado como um homúnculo desgarrado dos demais que criou o seu próprio grupo para realizar os seus desejos. Tem como habilidade a defesa suprema, permitindo a ele cobrir seu corpo com uma camada de ferro praticamente impenetrável. Como a diferença de poder entre os humanos e os homúnculos é gigantesca, Hiromu precisava equilibrar essas duas forças, assim, trazendo Ganância para o lado dos mocinhos, transformando-o em um anti-herói. Porém, essa mudança foi bem construída, usando a essência do pecado desse personagem como motivação para as suas ações.
Ganância é apresentado primeiramente como mais um inimigo a ser derrotado pelos irmãos Elric, mas ele cresce mesmo como personagem quando Ling Yao se oferece como hospedeiro para o pecado capital. Ling é o décimo segundo príncipe herdeiro do Império de Xing e líder do clã Yao. Ling é introduzido na narrativa quando ao se aventurar numa jornada em busca do segredo da imortalidade – a Pedra Filosofal – como uma forma de garantir uma boa posição perante o Imperador de Xing na competitiva batalha entre os clãs xingueses e, assim, assegurar o trono para si. Seu desejo é tão forte que, ao ser engolido por Ganância ele consegue sustentar sua individualidade. Com a fusão desses dois personagens, novas situações são criadas e diferente de Bradley que cedeu ao pecado da Ira, Ling luta constantemente contra Ganância, dando sermões e conselhos, criando uma parceria com o pecado e humanizando-o. Esse pecado é o último a morrer, sendo crucial para a derrota do Pai. Quando absorvido pelo seu criador, Ganância se volta contra ele, permitindo que Edward vença a luta.
Existe uma frase desse homúnculo que eu gosto muito: “Vocês humanos pensam que ganância é apenas dinheiro e poder, mas todo mundo quer algo que não tem”. Acredito que um pouco de avareza é saudável para que consigamos atingir nossos objetivos, mas quando se torna um desejo excessivo por algo pode começar a ser um problema. No fundo, talvez esse pecado só seja o receio de perder o que se tem, querendo sempre manter o controle da situação, acumulando tudo no intuito de se precaver contra determinada ameaça, mesmo que ela nunca venha a acontecer.
Os 7 pecados capitais são inerentes à existência humana. Apesar de serem construções sociais da igreja para ajudar na manipulação e controle dos fiéis, esses impulsos primitivos, provavelmente, podem ter sido fruto de uma seleção natural entre os genes dos nossos ancestrais e podemos confabular um pouco a respeito de como cada um deles nos foi útil antigamente:
Luxuria conduzia ao sexo, este que era essencial para a reprodução da espécie, e os indivíduos que sentissem mais prazer com o ato, procriariam mais. Gula foi relevante porque na rotina de caçadores e coletores, era importante você consumir ao máximo o alimento que fosse encontrado, pois não havia garantia de que no dia seguinte você estaria com o estômago cheio.Ganância e Inveja eram comportamentos que incentivavam a competição. Almejar o que o seu rival conseguiu era um indicativo do quanto seria possível conquistar em determinado território, além de procurar sempre expandir suas fronteiras. Preguiça permitia aos nossos ancestrais preservar suas energias em um momento de dificuldade e a resolver determinados problemas de maneira mais prática, mesmo que não fosse de forma definitiva. Orgulho poderia ajudar a obter boas parceiras e a se manter no poder por mais tempo. Por fim, a Ira era importante na formação de bons guerreiros, fortes em batalha, que ajudariam a conquistar novos territórios e defender o atual contra qualquer ameaça. Com o tempo, obviamente, fomos capazes de conter nossos impulsos primitivos e aprender com eles, para que conseguíssemos viver de maneira mais civilizada e menos caótica.
O fato de os vilões de FullMetal Alchemist Brotherhood terem o conceito dos pecados capitais, obrigou os outros personagens a se unirem, superando suas próprias limitações carnais para derrotá-los, fortalecendo uma corrente positiva entre personagens que não necessariamente eram aliados em detrimento dos sentimentos ruins tais como vingança e ódio, mostrando ao homúnculo original que os pecados capitais não são meras falhas que precisam ser removidas, eles proporcionam ao ser humano a capacidade de entender os seus erros e evoluir com eles, assim, tornando-se pessoas melhores, ainda que nunca perfeitas.
Autodidata de Youtube e ex valentão da escola. Hilário adora mitologias em geral, astronomia e desenhos animados, mas seu passatempo favorito é irritar as pessoas, geralmente ele consegue. Sonserina orgulhoso, ariano, otaku reprimido e chaotic evil.