Bons filmes protagonizados por negros sempre existiram, mas frequentemente se limitavam a certos temas, podendo ser relatos históricos que mostram a luta e os horrores do racismo, como 12 Anos de Escravidão (12 Years a Slave, 2013), Selma: Uma Luta Pela Igualdade (Selma, 2014) e Mudbound: Lágrimas Sobre o Mississipi (Mudbound, 2017) ou apenas a dificuldade da minoria para sobreviver na sociedade atual, como Cidade de Deus (2002), Fruitvale Station: A Última Parada (Fruitvale Station, 2013) e Beasts of no Nation (2015). Porém, a ficção é um produto do seu tempo e, com os movimentos sociais ganhando cada vez mais força e relevância, como o #BlackLivesMatters e o #OscarSoWhite, o negro começou a ganhar um protagonismo diferente, saindo da favela e da situação precária, expandindo a discussão do racismo para outros gêneros, com novos visuais e outras abordagens, como é o caso de Moonlight: Sob a Luz do Luar (Moonlight, 2016), Corra! (Get Out!, 2017) e Pantera Negra (Black Panther, 2018). É evidente que esse protagonismo não se limitaria ao cinema e com os canais ABC, FX e HBO exibindo as séries Black-ish, Atlanta e Insecure respectivamente, a Netflix não podia perder a oportunidade de ter o seu próprio conteúdo original para esse público.
É então que em 2017, a gigante do streaming lança a série Cara Gente Branca (Dear White People, 2017 -) mais conhecida por seu título original mesmo. Criada e dirigida por Justin Simien que também é o autor do livro e diretor do filme de mesmo nome de 2014, a série conta a história do dia a dia dos alunos pretos na universidade de Winchester, uma faculdade predominantemente branca dos Estados Unidos. A trama é contada de acordo com o ponto de vista dos personagens Samantha White (Logan Browning), Troy Fairbanks (Brandon P Bell), Lionel Higgins (DeRon Horton), Colandrea ‘Coco’ Conners (Antoinette Robertson), Gabe Mitchell (John Patrick Amedori), Joelle Brooks (Ashley Blaine Featherson) e Reggie Green ( Marque Richardson), tendo cada um deles um capítulo só para si.
Em 2017, quando o trailer da série foi lançado, a Netflix sofreu críticas e boicote devido ao “racismo reverso” que ela estava propagando, afinal, pessoas brancas não estão acostumada ao humor referente a elas, já que, como maioria privilegiada, o padrão sempre foi rir e diminuir a minoria. Esses indivíduos estão tão fechados em suas bolhas de conteúdo e estilo de vida que, quando algo novo aparece, obrigando-os a perceber e refletir sobre seus comportamentos, a reação de raiva e ódio ao diferente é quase que imediata. O curioso é que 13 Reasons Why (2017 -), que estreou um pouco antes, foi um verdadeiro fenômeno e preencheu o twitter por semanas com o assunto suicídio e bullying. Mas, quando outra série teen, com tema tão pesado quanto, apareceu o feedback não foi o mesmo. O silêncio das redes sociais foi ensurdecedor, aparentemente o racismo não afeta a todos.
Apesar de tudo isso, Dear White People já mostra a que veio e dá o tom da série para o espectador desde o primeiro episódio. Discutindo ao longo dos seus 20 episódios de 30 minutos, racismo velado, explícito e institucional, mostrando o ponto de vista dos seus diversos militantes a respeito desses assuntos. Afinal, a comunidade negra é complexa e tem diversas ramificações. Além disso, a série traz para o debate pautas como colorismo, apropriação cultural, machismo, homofobia, empoderamento estético, esteriótipos raciais, sexualização do negro, violência policial, privilégio branco, liberdade de expressão, discurso de ódio, representatividade negra na cultura pop, segregação racial e muitos outros temas, sempre com um humor irônico, sarcástico e ácido. Há uma fotografia saturada, a música clássica e o ar “engomadinho” da faculdade demonstram o quão falso e tóxico é aquele ambiente. As interações dos alunos e o jeito de falar do narrador (Giancarlo Esposito) só agrega à essa percepção.
A primeira temporada consegue equilibrar muito bem o humor e o drama, mostrando os diversos personagens que preenchem a série, cada um com suas próprias motivações, ideias e dilemas. Entretanto, em muitos momentos me incomodou a forma didática e expositiva que algumas críticas eram feitas, era quase uma aula de slides e o uso frequente da quebra da quarta parede, só tornou mais evidente o problema. Mesmo assim, não acredito que a série seja pedante. A temporada sabe o que quer e com isso consegue ter momentos e diálogos memoráveis, como o excelente capítulo 5, dirigido por Barry Jenkins (Moonlight), que discute o racismo da polícia.
A segunda temporada mantém as discussões relevantes e o humor ácido, além de corrigir o problema de exposição que a sua predecessora tinha, deixando o texto mais natural. Entretanto, o novo ano da série é focado no desenvolvimento dos personagens, não contendo uma história principal forte que ligue todos os episódios, diferente da primeira temporada que conectava as subtramas com um plot principal da festa Black Face, culminando no protesto dos alunos dentro do campus.
A temporada começa muito bem, trazendo discursos conservadores de direita e abordando o racismo nas redes sociais. Assim, dando voz para todos os lados, por mais odiosas que sejam as declarações. No primeiro ano tivemos o contraponto do Dear Black People, desta vez temos o Dear Right People.
Outro ponto alto da temporada foi a adição dos flashbacks do passado da universidade, cujo propósito é mostrar que o racismo está intrínseco na sociedade americana, nunca desaparecendo, apenas se transformando e se adaptando.
Infelizmente, uma das coisas que eu mais gostava na série foi deixado de lado nessa temporada, o programa de rádio da Sam. Desta vez, o foco ficou nas ações da personagem fora do estúdio, conectando a radialista com a família e mostrando as consequências da season finale da temporada anterior. Outra comparação possível são os episódios marcantes. Apesar do capítulo 8 ter uma discussão fantástica entre Sam e Gabe e o capítulo 9 nos apresentar o relacionamento da Sam com sua família, essa temporada não teve nenhum episódio memorável como o capítulo 5 do ano anterior.
Apesar do excelente começo de temporada, a série se perde com o avançar dos episódios, aparentando esquecimento do seu objetivo inicial. Alguns personagens principais ficam sem rumo e um plot de sociedade secreta é adicionado. Particularmente, acho que isso desvirtuou a série do seu propósito e parece muito uma tentativa de esticar e engrandecer a história para mais temporadas sem necessidade. Tenho medo do que pode vir na terceira temporada, me deixando com a sensação de que o projeto deveria ter sido uma mini-série, com uma narrativa fechada apenas em uma temporada.
O programa não manter a qualidade me deixa bastante triste. Produções negras sempre tem a obrigação social de serem ótimas, nunca podem se dar ao luxo de serem medíocres como incontáveis séries com protagonismo branco. Estamos sempre correndo o risco de ouvir a falácia “coisa de preto não dá certo” nos discursos das pessoas quando determinado filme ou série é apenas ok. De qualquer modo, Dear White People é muito relevante, tem um tom político bastante forte, personagens carismáticos, diálogos inteligentes e um humor que qualquer pessoa preta vai amar, mas isso tudo não basta se a série não tiver uma história forte e um planejamento a longo prazo. Deixando assim o espectador frequentemente com a sensação de que poderia ter sido melhor.
Autodidata de Youtube e ex valentão da escola. Hilário adora mitologias em geral, astronomia e desenhos animados, mas seu passatempo favorito é irritar as pessoas, geralmente ele consegue. Sonserina orgulhoso, ariano, otaku reprimido e chaotic evil.