Maria Madalena – O olhar da 13ª apóstala de Cristo

Uma história tantas vezes contada, mas ainda assim, tão carregada de mistérios quanto possível. A vida de Jesus Cristo certamente já passa de uma centena de representações no audiovisual. No cinema desde seus primórdios, na TV, seja como série ou telenovela, seja como animação, a jornada do Nazareno têm sido várias e várias vezes narrada das mais variadas formas, com as mais variadas interpretações e pontos de vista, e mesmo assim não é surpresa quando um novo olhar recai sobre sua vida e seus ensinamentos, o raro mesmo é quando este novo olhar se arrisca em sair do lugar comum, do tradicional, e envereda por caminhos mais ousados. E quando um olhar assim acontece, é difícil  ele não magnetizar minha atenção de imediato.
Mas o interessante é que este Maria Madalena (Mary Magdalene, 2018), novo filme de Garth Davis, diretor de Lion: Uma Jornada Para Casa (Lion, 2016), não foi vendido como tendo esta irreverência, então entrei na sala de cinema esperando nada mais do que mais um filme bíblico aproveitando as vésperas da Semana Santa para faturar uma grana dos cristãos. Mas me escapou a percepção de que o filme teria estreia uma semana depois do 08 de março, Dia Internacional da Mulher e, mais ainda, apesar de dirigido por um homem, o filme foi escrito por duas roteiristas, Helen Edmundson e Philippa Goslett. Assim, mesmo que imaginasse que o ponto de vista do filme fosse o da personagem título, fiquei surpreso (da melhor forma possível) quando percebi que não veria mais um filme bíblico comum.
Antes de falar qualquer coisa é preciso dizer que a escolha dos intérpretes dos protagonistas, Jesus (Joaquin Phoenix) e Maria Madalena (Rooney Mara), por mais competentes que sejam os atores e por mais que seja uma jogada de marketing para não espantar os mais conservadores e atrair um público que curte o star system hollywoodiano, ainda é sintomático da insensibilidade da indústria do audiovisual quanto à questões de representatividade e mesmo de coesão histórica, já que sabemos que a etnia e a cor da pele das populações daquela região dificilmente se aproximariam das de Phoenix e Mara. Mas pelo menos alguns dos apóstolos, entre eles Pedro (Chiwetel Ejiofor), que recebe maior destaque, teve uma escolha de intérpretes mais coerente.
O filme começa no lugarejo de Magdala (daí o nome Madalena ou Magdalena), onde vive Maria e sua família. Ela logo é prometida em casamento, em acordo firmado pelo pai e irmão mais velho, a um homem viúvo de uma região vizinha, com a justificativa de que seus filhos precisavam de uma mãe, além da idade já avançada de Maria, que depois sabemos, já havia se esquivado de algumas “propostas” anteriores. Ao tentar fugir de mais este matrimônio seus parentes a acusam de ter sido possuída por espíritos malignos que a estavam fazendo agir contra as leis divinas e se comportando como uma louca (qualquer semelhança com fatos atuais não é mera coincidência). Para desespero e vergonha dos familiares Maria se junta ao grupo de um pregador que aparecera na região e que diziam ser o sucessor de João Batista.
Daí em diante acompanhamos algumas passagens já conhecidas da trajetória de Jesus, mas que através do olhar de Maria Madalena (e das ótimas roteiristas) ganham um significado completamente novo, pelo menos para mim, como a ressurreição de Lázaro ou a revolta de Cristo diante do templo transformado em mercado. Mas também alguns momentos que não são mencionados nas escrituras, como quando encontram um grupo de mulheres e Jesus questiona a Maria “como deve pregar a elas” e ela rebate com uma das melhores frases do filme: “somos tão diferentes dos homens que precisa nos ensinar coisas diferentes?”. 
 
A construção da relação entre Maria e Jesus é feita com um cuidado tremendo e jamais os vemos como amantes carnais, ou até mesmo uma reverência divina a ele por parte dela, mas sim uma admiração grandiosa entre os dois, um amor espiritual, e é muito bonito quando há uma breve conversa entre Madalena e a outra Maria, a mãe. Por outro lado vemos o ciúme e a inveja de Pedro ao assistir a crescente importância que uma mulher está ganhando ao lado de seu mestre e líder espiritual, tornando-o o mais próximo que o filme constrói de um vilão, papel que geralmente é dado a Judas, que aqui é propositalmente representado como um bom homem, que deseja apenas se juntar à sua família no plano divino. Mas Pedro acaba sendo quase uma representação do que é a Igreja, ao nunca aceitar Maria como uma apóstola legítima, e responsável pela imagem negativa que a personagem ainda carrega (mesmo que em 2016 o Vaticano tenha admitido que Maria Madalena nunca foi prostituta ou adúltera), contribuindo para que, até hoje, a imagem feminina seja sempre colocada em segundo plano ou até mesmo completamente rechaçada.
Outro ponto que o filme levanta e que nunca havia visto em outros do gênero foi o lado político das ações do grupo que acompanhava Cristo. O Reino de Deus prometido por Jesus poderia ter um significado tão mundano quanto espiritual, pois seria também a libertação do povo da Judéia perante o subjugo do Império Romano, aproximando os apóstolos dos chamados Zelotes, pessoas que tinham como objetivo incitar rebeliões para esta libertação, o que de fato aconteceria décadas depois da morte de Cristo, na chamada Guerra Judaico-Romana (séculos I e II). É interessante ver Pedro e os outros apóstolos pensando em estratégias para a propagação das ideias “revolucionárias” de Jesus, iniciando pelas cidades menores até chegar à grande metrópole de Jerusalém, mostrando um lado político desta história que convenientemente se tenta ocultar.
Maria Madalena dá um enorme passo em relação ao subgênero “filmes bíblicos”, ao ousar sair do tradicionalismo e tocar em questões tanto atuais quanto urgentes, e ainda mais, nos lembrar algo que até mesmo muitas pessoas religiosas parecem estar esquecendo: não é preciso ser Jesus Cristo para fazer acontecer o milagre da misericórdia.