Numa Hungria fria e distante, um casal de desajustados encontra-se durante os sonhos, único cenário no qual conseguem, afinal, alguma conexão. Esticada de forma lenta e suave, essa premissa é o motor do filme Corpo e Alma (Teströl és lélekröl, 2017), vencedor do Urso de Ouro no prestigiado Festival de Berlim e o representante húngaro entre os indicados ao Oscar de melhor filme em língua estrangeira.
Trata-se, claro, de um ponto de partida familiar, presente mesmo no favorito ao grande prêmio da academia, A Forma da Água (The Shape of Water, 2017). A direção ao mesmo tempo sisuda e emocional da Ildikó Enyedi, dá, contudo, uma melancolia controlada à conhecida história de amor entre párias sociais, num jogo fílmico de aproximação e distanciamento.
As deficiências dos protagonistas são físicas (como o braço imobilizado de Entre, vivido com carência e naturalidade por Morcsányi Géza), psíquicas (Mária, interpretada com proposital apatia Alexandra Borbély, parece sofrer de depressão) e, em ambos, sociais. Eles não possuem muitos amigos, Mária é rechaçada por seus colegas de trabalho por seu comportamento frio e distante. Entre não quer amar por ainda sofrer com as feridas de um antigo relacionamento, Mária não consegue se consultar com outro terapeuta que o mesmo que ela ia quando criança.
Não estranha que ambos se vejam como animais de caça, ela como uma corça, ele como um cervo, nos sonhos austeros, mas reconfortantes, que eles compartilham misteriosamente entre si. Apenas neste momento, os dois desajustados conseguem se encontrar de fato, desviando-se das árduas banalidades da vida cotidiana, uma vez que se veem como animais selvagens, livres de convenções e bons comportamentos.
Apesar do tom pastoral e sem firulas, o filme ganha certa leveza com o uso de um humor improvável (é por meio de uma investigação absurda e fora de todos os padrões que Entre e Mária sabem que estão presentes nos sonhos um do outro) e da identificação do público com a fragilidade dos personagens principais. Por vezes, vendo algo feito fora dos Estados Unidos ou do Brasil, temos a chance de assistir a atores com aparência normal e trejeitos pouco afetados, e este é o caso na dinâmica dos protagonistas de Corpo e Alma.
Os sonhos, evidentemente, são finitos e eventualmente a alma dá lugar ao corpo. Enyedi nos oferece reiteradas e incômodas cenas de abate de bovinos, que se passam no abatedouro onde nosso casal se conhece e passa a maior parte do filme, para deixar claro que o sangue e os sacrifícios da sociabilidade têm um escopo bem mais volumoso nas nossas vidas, sentenciando os protagonistas a um destino agridoce e inevitável.
Um jornalista baiano e escorpiano que gosta de longas caminhadas na praia e acha a experiência humana muito cansativa. Ícone de grupos de whatsapp e telegram, as paixões de Bertonie vão de Miyazaki a Truffaut, de Bowie à Bethânia, mas seu maior vício é fazer e escrever em blogs.