Quatro filmes da lista de indicados ao Oscar desse ano me chamaram muita atenção, dois deles concorrendo ao prêmio de melhor filme do ano. Quatro narrativas de gêneros, referências e lugares bem distintos entre si, mas que se destacaram para mim por tratarem, alguns mais de forma indireta que outros, de um tema em especial: a relação entre mãe e filha.
Não que seja exatamente uma novidade, não é de hoje que se aborda esse tipo específico de conflito familiar tão complexo quanto universal, dois bons exemplos são Sonata de Outono (Autumn Sonata, 1978, Ingmar Bergman) e Carrie, a Estranha (Carrie, 1976, Brian de Palma) em que a relação das matriarcas com suas descendentes diretas já era trabalhada, mesmo que os filmes sejam absolutamente diferentes. De fácil identificação por se tratar de uma situação muito comum e próxima do espectador, esse drama familiar sempre é um trunfo na mão dos roteiristas. Nesse texto pretendo analisar como essa dinâmica é desenvolvida em cada um dos exemplos escolhidos.
Um dos temas trabalhados em Lady Bird: A Hora de Voar (Lady Bird, 2017) é a insatisfação. Isso pode ser observado em muitos personagens, mas principalmente (claro) nas personagens centrais da trama. A protagonista Lady Bird (Saoirse Ronan) é uma menina frustrada, ela sente que nem as pessoas nem o colégio, nem a cidade são o bastante para ela e em sua arrogância, própria da adolescência, não consegue perceber que Marion (Laurie Metcalf), sua mãe, sente algo muito parecido. No momento do filme, o marido de Marion está passando por problemas financeiros e é ela que sustenta a casa, há um ressentimento palpável na mãe porque sabe que a filha não valoriza o que ela lutou tanto para conseguir, ela sabe que a filha se envergonha da casa e do modo de vida que eles levam, ao mesmo tempo isso também remete à sua própria insatisfação, há uma sequência em que descobrimos que o programa favorito das duas é visitar casas que estão disponíveis para alugar e entendemos ali que as coisas também não tinham saído exatamente como Marion tinha planejado, ela queria mais para si e para sua família. Algo que é exposto mais tarde numa discussão com Lady. Na verdade, é notável que embora as duas se vejam como rivais e que a história coloque como Marion como uma antagonista (o desejo principal da filha é ir embora para estudar em outra cidade e a mãe é fervorosamente contra) podemos perceber que as duas, na verdade, tem personalidades muito parecidas.
Existem duas ideias muito interessantes que são colocadas para o público nesse filme, a primeira é que muitas vezes amar é prestar atenção, se importar. A freira-diretora do colégio questiona Lady Bird a respeito de uma redação em que ela descreve a cidade de Sacramento com muitos detalhes e afirma que isso é uma prova do amor da menina pela cidade, a própria direção do filme mantém essa atenção com enquadramentos que valorizam as paisagens da mesma. Sendo assim, podemos entender que a relação de amor entre a mãe e a filha do filme está justamente no comportamento obsessivo de Marion, um cuidado e uma atenção excessiva, no desejo de que a filha não vá para uma faculdade tão longe para que assim as visitas fossem mais frequentes, o desejo de continuar cuidando. Claro que nem sempre esse cuidado vem de um jeito agradável, mas sim na forma de muitas críticas e discussões.
Quando a filha manda um recado para sua mãe, no fim do terceiro ato, Lady finalmente conseguiu amadurecer o bastante para aceitar e valorizar tudo que tinha rejeitado até agora, seu nome, sua cidade, sua família e principalmente, o amor – mesmo que nem sempre correto e fácil – da sua mãe. É quando entendemos a segunda ideia, de que felicidade e sucesso nem sempre andam juntos. Justamente quando Lady Bird consegue tudo o que quer é que ela percebe que não está verdadeiramente feliz enquanto que o lugar que ela deixou era sim, simples, e pequeno demais para suas ambições, mas repleto de afeto. Portanto, esse filme pode parecer para muitos como uma história boba devido sua simplicidade, mas é exatamente como Sacramento; simples e verdadeiro. Um filme que dá vontade de ligar para sua mãe (ou para qualquer pessoa que cumpriu esse papel na sua vida) e agradecer por tudo o que ela fez por você.
Entretanto, Lady Bird é o único filme do texto que trás uma relação otimista, ainda que conflituosa, entre mãe e filha. Numa metáfora visual, o filme de Greta Gerwig é a subida íngreme enquanto os outros são a descida vertiginosa da montanha russa. Em Projeto Flórida (The Florida Project, 2017), acompanhamos as vidas de pessoas que moram em motéis baratos de Orlando, à beira dos grandes parques da Disney. Em um desses motéis, o colorido Magic Castle Inn, conhecemos Moonee (Brooklynn Prince), uma garotinha que passa seu tempo vagando pelas redondezas, cuspindo em carros, falando com estranhos na rua e invadindo casas, completamente negligenciada por sua mãe, Halley (Bria Vinaite), uma jovem sem muitas perspectivas de futuro, muito mais preocupada em sobreviver um dia de cada vez, se virando como pode entre pequenos golpes, trabalhos marginais e acordos com o gerente do prédio a respeito do aluguel.
A alienação de Moonee a respeito da sua própria realidade é encantadora de assistir, para ela as férias tratam-se apenas de viver aventuras que pode com seus amiguinhos, contrastando-se a isso temos o cotidiano de sua mãe, claramente jovem e despreparada demais para lidar com tudo isso. Entendemos que o comportamento genioso e muitas vezes delinquente da filha é completamente espelhado da mãe e é angustiante perceber que embora exista uma ligação de carinho entre as duas, aquele não é o lugar em que Moonee deveria estar.
Quando chegamos ao fim, depois da condução livre mas ao mesmo tempo meticulosa e paciente de Sean Baker, estamos apegados às personagens, queremos o melhor para elas. Infelizmente, porém, sabemos que caso continuassem juntas Moonee não se tornaria uma mulher muito diferente de sua mãe, e nos compadecemos por Halley, mesmo sabendo que talvez a separação seja melhor para as duas. Embora haja uma relação, essa relação é destrutiva para as duas. Tomar consciência disso é a maior tragédia do filme, pois sabemos que é o que muitas vezes acontece na vida real.
Já Três Anúncios Para Um Crime (Three Billboards Outside Ebbing, Missouri, 2017) trás uma relação um pouco menos desenvolvida entre mãe e filha, porém acho importante destacar isso do filme porque diante de tantas coisas que podem e acabam sendo discutidas sobre ele, de longe o filme mais controverso da categoria melhor filme, sinto que esse ponto sempre é deixado meio de lado, aliás, sinto que a personagem mais complexa do filme é deixada meio de lado em detrimento dos personagens Willoughby (Woody Harrelson)e Dixon (Sam Rockwell).
Mildred (Frances McDormand) está de luto pelo assassinato de sua filha e completamente desacreditada da efetividade da polícia em encontrar um culpado para o caso, quando ela decide agir e cobrar por resultados é porque ela caminhou para um ponto de não retorno, ela não tem mais o que perder, nem sente que tem outra escolha a não ser expressar sua dor e culpa através do ódio e da violência.
Culpa, sim. Mildred sente culpa pelo que aconteceu com sua filha, não porque ela tenha feito alguma coisa de fato e sim porque descobrimos mais ou menos no meio do filme que a última interação com a filha tinha sido uma discussão acalorada, o que pode quebrar um pouco a expectativa do público que talvez esperasse uma lembrança imaculada da moça. O fato é que Mildred é uma mulher que suportou abusos por parte do marido a vida inteira, e que depois de fazer os anúncios passa a aturar também o machismo estrutural e conservadorismo da cidade. Dado o lugar onde mora, não é muito difícil imaginar que sua infância fora muito melhor do que isso. Ela não é um personagem completamente agradável, é ignorante e, apesar de não ser tão evidente quanto os policiais, é preconceituosa também. Violência é tudo que essas pessoas conhecem, portanto quando Mildred precisa expressar a frustração de viver sem respostas, de conviver com a culpa de ter tido um relacionamento difícil com a filha e de não ser ouvida pelas pessoas é colocada para fora na forma de fúria e agressão.
Se percorremos toda a decida da montanha russa, Eu, Tonya (I, Tonya, 2017) é realmente a linha da chegada. Aqui temos a história de Tonya Harding (Margot Robbie), uma patinadora de gelo que não enfrentou outra coisa na vida, senão maus tratos de todos os que a rodeavam, o filme retrata a relação entre mãe e filha mais abusiva de todas, Lavona (Allison Janney) identifica o talento em Tonya e a coloca no caminho certo, mas essa é a única coias que ela faz de positivo por ela. Em todos os outros momentos temos demonstrações de abuso psicológico chegando ao ponto de afetar as interações sociais da filha. Quando Tonya se casa e passa a apanhar do marido ela chega a dizer que deveria merecer porque “minha mãe me amava e me batia, então Jeff deveria amá-la também, apesar das agressões”, como se não bastasse, além da família e do casamento, Tonya também é abusada pela imprensa e pela lógica do esporte em que compete. De alguma forma, Tonya acha que apanha porque fez por onde merecer isso, de tanto ouvir da boca de todo mundo que sua vida tinha que ser assim mesmo, ela acreditou. Oprimida, não consegue compreender que existe outra forma de viver porque tudo que ela teve em sua base familiar foi violento. Ela se submete a essas situações e se coloca nessa posição, à mercê dessas pessoas. É absolutamente sufocante a realidade da protagonista e a sensação só se agrava quando se percebe que, dentre todas as histórias até aqui, esta é inspirada em fatos. É impossível, enquanto mulher, não se sentir tocada por Eu, Tonya e desejar com todas as forças que ela pudesse ter tido uma nova chance, para ser amada e valorizada da maneira que merecia.
Esses são os filmes que mais me chamaram atenção dentre todos os indicados ao Oscar, poderia ter citado outros, como The Breadwinner (2017), por exemplo, mas o texto ficaria extenso demais. Todas essas representações conversam comigo de formas diferentes, mas algo que compreende bem esse recorte é poder perceber que são todas personagens com camadas, nas quais você pode se aprofundar com cuidado no olhar. É gratificante perceber que os filmes estão conseguindo retratar mulheres de muitas maneiras, distante de esteriótipos, principalmente em momentos como o que estamos vivendo, parece que o tempo das personagens objetificadas e unidimensionais está cada vez mais contado e atribuo esse pequeno sucesso ao olhar cada vez mais cuidadoso do público, não absorvemos mais as histórias da mesma maneira, ainda bem. Claro que é só o começo, estamos bem no início do processo. É bom, o cinema precisa continuar se reinventando porque do lado de cá a luta apenas começou. Feliz primavera das mulheres.
Roteirista e podcaster bacharel em Cinema e Audiovisual. Fica feliz ouvindo música triste. Se emociona quando fala de The Last of Us e enlouquece quando o assunto é Harry Potter ou Adventure Time. Apreciador dos bons clássicos da Sessão da Tarde e do Cinema em Casa. Um Goonie genuíno.