A Retratação de Deus em FullMetal Alchemist Brotherhood

A ideia de um Criador existe no consciente da raça humana há milênios. No início, essas divindades eram a personificação de algo que proporcionava proteção e alimento, como o Deus Fogo ou o Deus Rio, e com o tempo evoluíram, ganhando complexidade, um caráter mais humano e expandindo a sua influência, como Apolo, deus do sol, da poesia, da música…enfim, deuses eram criados para explicar acontecimentos que não compreendíamos, como as estações do ano e os terremotos, e para obtenção de prosperidade e bênçãos, seja proteção em alguma batalha ou a cura de uma enfermidade. Essa necessidade de acreditar em algo sempre fez parte do ser humano, é da natureza humana buscar entender o que acontece à sua volta, e em tempos onde a ciência não era tão avançada como nos dias atuais, é bem compreensível essa adoração cega por divindades mitológicas. É por isso que o conceito de deus em FullMetal Alchemist Brotherhood (2009 – 2010) é tão interessante, o contraste e a mescla da ciência com o sobrenatural é desenvolvido magistralmente pela autora Hiromu Arakawa.
A alquimia em Amestris é tratada como uma ciência e muitos alquimistas dedicam a vida para pesquisar, compreender e criar técnicas únicas, os chamados círculos de transmutação, mas logo no terceiro episódio do anime esse embate de ciência vs religião já acontece, com o personagem Edward, mergulhado na sua arrogância e prepotência, listando todos os elementos que compõem o corpo de um ser humano adulto, enquanto Rose discursa para o herege sobre o poder da fé e o quanto a vida humana é preciosa, com O Criador tendo um plano para cada um de nós. No final do episódio, Rose descobre que o padre da cidade não conseguiria trazer o seu amado de volta a vida, pois os milagres dele são frutos da alquimia, assim ficando sem chão, desacreditada, perdendo o sentido de viver. O episódio chega a sua conclusão, com a frase de Edward: “Levante a cabeça e prossiga com a sua vida…você tem às suas próprias pernas para poder andar, então use-as”.
Entretanto, o anime não é maniqueísta defendendo a superioridade de uma ideologia perante a outra. Literalmente no episódio seguinte ele discute a ética e os limites da ciência, com a apresentação do Alquimista da Trama Vital, Shou Tucker, resultando em um dos momentos mais chocantes do anime. Depois disso, o desenho também nos mostra que a alquimia pode ser algo horrível, com os diversos flashbacks do massacre de Ishbal.
“Eu sou a existência que vocês chamam de Mundo, também sou chamado de Universo, ou de Deus, ou de Verdade, ou de Tudo, ou de Um, e mais, eu sou Você”. 
Deuses, muitas vezes, são retratados nos animes como inimigos a serem vencidos pela humanidade ou simplesmente entidades arrogantes que só pensam em si mesmas, não se importando com a raça humana. FullMetal Alchemist Brotherhood nos entrega uma figura sarcástica, abstrata e inalcançável. O guardião da porta da verdade é uma silhueta vazia, sorridente, com a forma do indivíduo que ignora a lei da troca equivalente fazendo uma transmutação humana. Este ser é bastante emblemático e intrigante, o seu senso de justiça e equilíbrio é cruel e irônico, trocando o conhecimento adquirido pelo alquimista, por aquilo que lhe é mais precioso, como no caso de Izumi que tentou reviver o seu bebê natimorto e pagou pela abertura do portão com a perda de alguns de seus órgãos internos, não sendo capaz de engravidar nunca mais.
A ideia de um Deus que não se importa com a sua existência e está ali apenas para cumprir as leis do universo é perturbadora, já que as pessoas estão acostumadas a serem o centro das atenções, acreditando que o universo gira ao seu entorno, que Deus está sempre lá para ajudar nas horas de dificuldade. Pessoalmente acho que é bem mais fácil suportar a vida e a morte pensando que O Criador tem um plano para todos nós e que seremos recompensados no final pelos nossos atos, ao invés de aceitarmos o universo caótico em que vivemos.
A cabala e o ocultismo estão bastante presentes no anime, desde as filosofias dos personagens até determinados acontecimentos da trama. Cada pessoa tem a sua própria porta da verdade, sendo a de Edward a árvore da vida do ocultista Robert Fludd, com às suas respectivas Sephiroths, enquanto a de Alphonse é a Medula da Alquimia. Esse portão é responsável pelo ser humano ser capaz de usar alquimia, além de conter o conhecimento de todos os mistérios do universo, ele ser algo único explicaria o porquê da pedra filosofal ser tão poderosa, ao ponto de conseguir burlar a lei da troca equivalente, afinal, ela é composta por almas humanas. cada uma com a sua respectiva porta da verdade. No decorrer do anime é mostrado que a porta do Homúnculo original é vazia, talvez, por ele ter se livrado dos seus 7 pecados capitais, tentando ser uma existência perfeita, mas perdendo assim a sua essência e individualidade. Quando o homenzinho do frasco questiona o Guardião do portão tentando entender o porquê dele não ter conseguido atingir seus objetivos, ele recebe a resposta: “Porque você não acreditou em si mesmo, você cresceu usando e roubando o poder de outras pessoas. Você não evoluiu.” É nesse momento que o Pai percebe a sua atitude contraditória, tudo que ele fez foi para alcançar O Altíssimo, quando na verdade ele já o tinha dentro de si mesmo. A presunção do Homúnculo o cegou, ele queria tanto superar os seres humanos que no fim apenas se tornou um casca vazia.
Outra filosofia abordada diante desta frase da Verdade é o lema da mestra dos protagonistas, Izumi: “Um é Tudo, Tudo é Um”. Esse pensamento cíclico pode ser visto na Cabala, no Budismo e em diversos outros lugares. É basicamente o ciclo da vida explicado na animação O Rei Leão (The Lion King, 1994), tudo no universo está conectado e cada um de nós faz parte desse todo, mas o todo só existe quando cada unidade se junta.
Por fim, existe uma citação que eu acho que ajuda a entendermos a frase do guardião do portão: “Existe a minha verdade, a sua verdade e a verdade”. Cada um de nós tende a ver o mundo da sua maneira, nossas memórias são fragmentos selecionados e editados das situações que vivemos, seja um momento de diversão, de tristeza, de medo…cada um vai lembrar daquilo do seu jeito, mas no final a verdade só é uma, independente do ponto de vista. Esse pensamento de que tudo é relativo também pode ser relacionado a verdade segundo Platão.
Apesar de pouco explorado existe outros dois pensamentos a respeito da interação de deus com a alquimia nesse universo. O povo de Ishbal acredita que a Alquimia é uma afronta, pois essa técnica distorce a criação do seu deus Ishbala. Já os cidadãos de Xing por usarem o Rentanjutsu, uma variação da alquimia amestrina voltada mais para a medicina, acreditam nas forças da natureza, pois essa técnica utiliza o fluxo de energia que percorre o planeta, conversando muito com as Linhas de Ley.
Dentre todos esses conceitos, a ideia de Deus ser o universo e nós mesmos foi a que mais me chamou atenção. De acordo com a astrofísica, somos todos um com o universo, os diversos elementos que são encontrados naturalmente na natureza e que compõem o ser humano foram produzidos nas fornalhas estelares, interior de estrelas, e liberados com o advento de uma supernova para todo o restante do cosmos. Então o pensamento de cada pessoa ter um universo dentro de si e ser o seu próprio deus é fisicamente e espiritualmente possível, mostrando assim o quão complexa e diversa é a retratação de deus em FullMetal Alchemist Brotherhood.