A linha que separa a dor e a raiva é quase invisível. Sempre que sofremos com algo – uma angústia, uma perda, uma injustiça, uma dor – quase que imediatamente procuramos um culpado, alguém em quem possamos extravasar nossa raiva, alguém em quem possamos descontar tudo, apontar o dedo, dizer que cometeu um erro. Às vezes esta pessoa pode ser outra pessoa ou podem ser várias, pode ser o Estado, pode não ser ninguém e pode ser até você mesmo.
Três Anúncios Para Um Crime (Three Billboards Outside Ebbing, Missouri, 2017) é um filme sobre este sentimento. Mildred (Frances McDormand) é uma mãe que há sete meses perdeu sua filha adolescente, brutalmente violentada e assassinada. Sete meses para uma investigação esfriar e nenhum criminoso ser encontrado. Um crime que deve ter chocado a pequena cidade de Ebbing, no estado do Missouri, EUA, mas que sete meses depois parece ter sido esquecido. Obviamente não por Mildred. Mas felizmente este não é um filme sobre uma investigação policial, ou uma história em que alguém decide resolver um misterioso caso sozinho e fazer justiça com as próprias mãos, ele é muito melhor do que isso, muito mais profundo e complexo do que poderia ser.
Logo no início Mildred tem a ideia de alugar três outdoors em uma estrada pouco utilizada na saída da cidade – os “anúncios” ou “billboards” do título do filme – e neles divide três frases questionando o motivo de nada ter sido resolvido sobre o assassinato de sua filha. Uma atitude que podia parecer desesperada, mas acaba se mostrando um plano muito mais elaborado. Os anúncios obviamente dão uma balançada na aparente calma em que a pequena cidade se apresentava e, como o esperado, chama a atenção da polícia local a quem exatamente eles foram direcionados, mais precisamente ao chefe Willoughby (Woody Harrelson), acompanhado pelo extravagante policial Dixon (Sam Rockwell) e é a partir daí que percebemos que, muito mais do que o crime ou a investigação em si, este é um filme sobre estas pessoas, como elas pensam e agem.
Como bom estudo de personagens o filme foge completamente de anunciar heróis ou vilões, e mesmo que Mildred seja a protagonista e a pessoa “injustiçada” ela jamais é colocada como frágil ou uma mulher de caráter impecável, enquanto Dixon, que poderia ser apontado como o vilão da trama por suas atitudes violentas e seus preconceitos típicos de algumas cidades do interior sul dos EUA, consegue nos mostrar uma mente perturbada que, mesmo não justificando suas ações, cria no expectador uma improvável empatia (ou pelo menos uma compreensão); e mesmo Willoughby, a quem o dedo é apontado desde o início como responsável pela falta de resultados na investigação, e que parece ser o personagem mais raso dos três, um bom policial íntegro, amoroso com a família e querido por todos, é assim exatamente para que possamos nos surpreender depois com uma atitude que acaba mudando todo o caminho que o filme parecia trilhar. E o mais incrível de tudo isso é que mesmo com toda essa complexidade todos eles são exatos estereótipos. Não só eles como praticamente todos os personagens secundários que aparecem no filme, o anão, o padre, o ex-marido agressor e sua esposa jovem e burra, são figuras caricatas de histórias que se passam naquela região do país. E isto é maravilhoso para o tipo de humor que o filme deseja mostrar. Sim pois, por mais difícil que se possa imaginar para um enredo tão pesado, este é um filme com um humor extremamente bem aplicado. Uma mistura entre comicidade e drama que já havia se mostrado nos trabalhos anteriores do diretor e roteirista Martin McDonagh e que lembra bastante o que vemos em alguns filmes dos irmãos Coen, uma acidez, uma sagacidade nos diálogos, nas ações e nas situações que me encantam profundamente.
Mas um filme como este não teria tanta força se não tivesse o elenco que tem. Não só o principal como também o elenco secundário, todos eles estão sensacionais. Caleb Landry Jones, Zeljko Ivanek, Peter Dinklage, John Hawkes, todos conseguiram acompanhar exatamente o ritmo e as sutilezas que o filme exigia, e mesmo Lucas Hedges, como o outro filho de Mildred e que parece mais apagado do que deveria, é sutil ao interpretar um jovem que, de forma contrária à mãe, não deseja ser notado nunca e quer apenas esquecer o que houve com sua irmã.
Entretanto, é mesmo com o trio McDormand, Harrelson e Rockwell que o filme se coloca muito acima da média comum. Eu poderia passar horas falando sobre o quão inacreditável está Frances McDormand e mesmo assim jamais conseguiria descrever em palavras. A expressividade, a melancolia, a raiva, a profundidade nos olhares, a forma de falar olhando bem nos olhos do interlocutor. Cada palavra dita de forma que facilmente conseguimos nos colocar no lugar daquela mãe e entender suas atitudes por mais drásticas que possam ser. Alguém que parece não ter mais nada a perder e por isso não teme enfrentar o que for preciso para conseguir sua resposta. Sam Rockwell nos presenteia com uma performance e um personagem inesquecível e que certamente se tornará icônico. Dixon poderia ser apenas um alívio cômico barato, mas a forma cuidadosa com que é interpretado e como se transforma conforme o decorrer do filme são impressionantes, além de protagonizar algumas das sequências mais memoráveis do filme. E Woody Harrelson, mais uma vez, me mostra o porquê de ser um dos meus atores preferidos em ação, dando uma serenidade ao seu chefe Willoughby mesmo quando ouvimos apenas sua voz em off lendo uma carta.
Três Anúncios (como passei a chamar carinhosamente o filme) não só é meu favorito no Oscar deste ano como ganhou lugar como um dos meus favoritos na vida. Não apenas por uma ambientação que eu normalmente já costumo gostar, ou pelas atuações maravilhosas, nem mesmo tecnicamente, já que o filme não esbanja muito nesse sentido – apesar do incrível plano sequência em que Dixon joga Red pela janela – mas principalmente por me trazer uma cumplicidade e uma empatia com aqueles personagens fantásticos (em todos os sentidos), por ser um filme que conseguiu me fazer rir e logo depois me dar uma arrepio na nuca, me surpreender e depois, incrivelmente, me fazer rir de novo. Três anúncios é um desses filmes para se rever, e rever, e rever… pelo menos eu o farei.
Cineasta e Historiador. Membro da ACECCINE (Associação Cearense de Críticos de Cinema). É viciado em listas, roer as unhas e em assistir mais filmes e séries do que parece ser possível. Tem mais projetos do que tem tempo para concretizá-los. Não curte filmes de dança, mas ama Dirty Dancing. Apaixonado por faroestes, filmes de gângster e distopias.