Entre 1975 e 1990 o Líbano, país localizado na Ásia Ocidental, passou por uma dura guerra civil motivada tanto por questões territoriais após o governo otomano, quanto pela entrada de refugiados palestinos no país da década de 1940 à 1980, motivando conflitos de cunho religioso e nacionalista entre cristãos maronitas e muçulmanos palestinos, agravados ainda mais com a intervenção da Síria, de Israel e da Organização para a Libertação da Palestina (OLP), desenhando um panorama de hostilidade que resultou em diversos massacres com um número incontável de vítimas.
Este é o contexto que serve como plano de fundo para o filme O Insulto (L’insulte, 2017) dirigido por Ziad Doueiri e primeiro representante do Líbano na categoria de melhor filme estrangeiro no Oscar. A história gira em torno de dois protagonistas, o mecânico cristão Tony Hanna (Adel Karam) e o mestre de obras, refugiado palestino, Yasser Abdallah (Kamel El Basha) que, após um pequeno mal entendido envolvendo a reforma de uma calha de chuva no apartamento do primeiro e um insulto por parte de um deles, acabam se envolvendo em uma briga judicial de proporções inimagináveis. E apenas com esta sinopse simplificada fica óbvio que o que o filme pretende é nos mostrar como os conflitos humanos, desde as menores brigas entre vizinhos até as maiores guerras, na maioria das vezes são motivados por questões ridículas. Mas seria irresponsável dizer que a mensagem é assim tão evidente e simplória. O filme aprofunda a discussão nos mostrando que ela é muito mais complexa do que o que vemos na superfície: interesses políticos que usam de subterfúgios como uma pequena discussão para chegar a seus objetivos, conflitos pessoais entre familiares, e a natureza belicosa do ser humano que não abre mão do orgulho nem mesmo quando sua própria vida e a de seus entes queridos está em risco.
Mas além de levantar questões sempre atuais como estas, o filme jamais se torna enfadonho ou panfletário, muito pelo contrário, consegue fazer isto através de uma instigante narrativa com excelente ritmo, onde podemos sentir a tensão crescente e o agravamento da situação, desde o início quando acompanhamos a realidade micro de um bairro de Beirute até quando podemos ver a realidade macro de um conflito que, após uma cobertura predatória da mídia, torna-se uma crise social envolvendo todo o país, chegando a envolver até mesmo o presidente.
A partir de certo momento passamos a acompanhar um filme que se encaixa no subgênero “tribunal”, quando ganha ainda mais força com a entrada dos advogados que defendem cada uma das partes, cada qual com seus próprios conflitos e intenções internas, e mesmo que estas pareçam forçadas e quase desnecessárias para uma situação que já parecia descontrolada, acho que funcionam como uma espécie de subtrama que acabamos tendo vontade de acompanhar. É totalmente possível aceitar certas decisões que, para nós, parecem absurdas de alguns personagens, pois fica claro que se trata de uma cultura totalmente diferente da que estamos acostumados. É necessário sempre termos em mente o contexto passado daquela região e de seus habitantes, o que o filme se encarrega de nos explicar através de sua própria narrativa. E é interessante perceber que mesmo após o fim “oficial” da guerra civil em 1990 os ânimos da população estão ainda tão aflorados quanto durante o conflito, já que o filme se passa atualmente, o que nos aponta muito bem o momento em que estamos vivendo, de um conservadorismo cada vez mais radical e emergente, seja de cunho religioso ou apenas político, ou pior ainda, quando estão ambos unidos.
Além disso Karam e El Basha estão incríveis nos papéis dos protagonistas, e embora o filme seja claro em tomar um dos lados como mais “certo” do que o outro, é fácil tentarmos entender as razões de cada um, mesmo que não concordemos com muitas delas, e mesmo que o filme em sua segunda metade pareça ter perdido de vista seus dois protagonistas por conta da proporção que o conflito toma, é incrível como as cenas em que os dois se encontram na saída da conversa com o presidente e depois em frente a oficina mecânica de Tony, quando Yasser, após ficar silencioso em boa parte do tempo, faz a decisão mais importante do filme. São eles dois – suas expressões, suas palavras e seus atos – que dão a sensibilidade necessária à discussão.
O Insulto é um filme sobre as delicadas relações humanas e como palavras podem ter tanta força quanto um soco no estômago e às vezes até mais.
Cineasta e Historiador. Membro da ACECCINE (Associação Cearense de Críticos de Cinema). É viciado em listas, roer as unhas e em assistir mais filmes e séries do que parece ser possível. Tem mais projetos do que tem tempo para concretizá-los. Não curte filmes de dança, mas ama Dirty Dancing. Apaixonado por faroestes, filmes de gângster e distopias.