A primeira coisa que me vem a mente quando penso no ano de 2001 é o ataque terrorista às torres gêmeas nos EUA. O rosto de Osama Bin Laden foi amplamente divulgado na TV. Palavras como Talibã, Cabul, Antraz e Al Quaeda, entram em nosso vocabulário. “A gente se vê por aqui” dizia o novo slogan da Globo e vimos a estreia de Os Normais, A Grande Família e a Casa dos Artistas. Era a hora do Windows XP. Demos as boas-vindas a Harry Potter no cinema e nos despedimos de George Harrison e Cássia Eller. Entre apagões e o “Baba Baby”, tivemos a presença de uma certa Anita. E a internet? Bem essa cresceu e a maneira de nos relacionarmos com a música mudou. Em poucos cliques encontrávamos e baixávamos músicas. O Kazaa bombava nas Lan houses. E a forma de produzir e consumir música nunca mais seriam as mesmas.
Na época, o mundo todo curtia as estreias de Gorillaz e The Strokes, a canção “Can’t Get You Out Of My Head” – a do “nanana nanananana” – de Kylie Minogue virou chiclete nas rádios. No Brasil, tivemos o terceiro Rock in Rio (aquele que foi patrocinado pela America Online, da chuva de latinhas sobre Carlinhos Brown e do boicote de bandas como o Rappa, Charlie Brown Jr, Skank, Raimundos e Jota Quest em protesto contra a organização do evento que privilegiava as bandas estrangeiras (sempre foi assim, né?). Foi o ano do Rodolfo dar adeus aos Raimundos e partir para o Gospel (Ufa! Ainda bem que deu tempo de ver a banda completa tocando o seu “MTV ao Vivo” na barraca Biruta em Fortaleza com direito a 28 músicas (!).
(jingle do evento tocado constantemente nas rádios e nos intervalos entre as atrações musicais. Virou chiclete!
Em outubro daquele ano, enquanto o mundo borbulhava e o Brasil se rendia à novela “O Clone”, aqui no Ceará – mais especificamente nas terras alencarinas da capital cearense – nos preparávamos para o maior evento de música realizado no Estado. “O chão do Ceará vai tremer. Vem aí Ceará Pop Music!” Dizia a chamada para TV – com direito a uma guitarra rompendo um chão rachado – meses antes do evento. O “pop” do título rapidamente caiu e ficou apenas Ceará Music. Seria exagero de minha parte dizer que a 1ª edição do evento foi o nosso “Rock in Rio de 1985”? Entre os anos 80 e 90 as grandes bandas do rock que aportaram em Fortaleza realizavam seus shows no Ginásio Paulo Sarasate (Legião passou por lá, Raul passou “bebaço” e só começou o show – o resto foi confusão, até o A-há foi!), na barraca Biruta ou no próprio Marina Park. Eram shows separados em datas que iam de acordo com a turnê das bandas. Agora um evento onde aglutinasse tantos talentos e tribos num mesmo lugar, o Ceará Music foi o primeiro.
Durante quatro dias, ocorridos entre 11 e 14 de outubro, o Hotel Marina Park foi palco do festival com atrações que iam de DJs e espaços esotéricos, passando por bandas do cenário nacional e bandas locais e regionais de menor expressão. A organização do festival, através da D&E e 77 Eventos, pretendiam colocar o Ceará na rota dos grandes eventos nacionais de música.
Pequenas reminiscências de três dias de festa que mudaram a cabeça de um pós-adolescente (ou O que me lembro, ficou para sempre)
Comprei o meu “Trio Music” (como era chamado o ingresso que dava acesso aos três dias de festival) num quiosque (hoje, a gente chama de stand) do evento lá no “distante” Iguatemi. Adquiri o meu no primeiro lote, no valor de R$ 69,00, muito bem parcelados em meu cartão Credcard Mastercard Universitário, aquele que te ofereciam no dia da matrícula logo que iniciávamos a graduação. O chato era que você teria que voltar ao mesmo quiosque, uma semana antes do evento ocorrer, para trocar o recibo de compra pelo cartão de acesso.
A ida já era um barato. Juntávamos a turma e íamos de trem da CBTU (trajeto Conjunto Esperança – Centro) ou de van (topic, Kombi, besta…depende do nome que usam na sua cidade), o importante é que íamos conversando sobre as atrações da noite, que músicas iriam tocar. Chegávamos na hora que os portões eram abertos, tomávamos várias lá fora porque saía mais barato e depois era só entrar e aproveitar tudo que o festival oferecesse ou ao menos, que pudéssemos ver.
Assim que chegávamos, nos deparávamos com o palco do BR Mania que rolava umas jam sessions, masnunca me interessei em conferir as atrações deste palco. Ainda próxima da entrada, perto do mar ficava a Tenda Mística que rolava umas massagens nos pés, nas costas, tinha umas pedras também. Era chegar e pagar R$10,00 (muito caro para a época) e que você era atendido. Até então, não via sentido algum em você relaxar num festival de música cheio de bandas legais, talvez fosse uma perda de tempo. O tempo me mostrou que aquilo fazia sentido. Principalmente quando você está mais velho. O Palco Music foi montado na área distante do hotel, então havia dificuldade da van levar os artistas do hotel-palco-hotel passando pelo meio da multidão. Nas edições seguintes, isso foi resolvido, coloram o palco colado no hotel. Na Tenda Eletrônica rolava uns “tuts tuts” (é lógico!) com uns DJs massa da época como o Mau Mau e o Patife (por onde andam esses caras?). Ainda tinha o Rick Amaral, Toni Manzotti e o Daniel de Paula.
Os preços das coisas eram bem caros dentro do evento. Coitado de mim que dava aula em poucas escolas particulares e o dinheiro não sobrava. O lance era fazer “as intera” e dividir uma garrafinha de água ou uma latinha da Schincariol ou de Coca-cola com os amigos (cinco conto cada!) só assim pra gente aguentar até a metade do evento para comprar um milkshake do Bob’s, Oh, delícia! Era glicose para matar a fome. Lembro-me das intermináveis filas. Filas para comprar o que comer ou o que beber, fila para o banheiro, fila para entrar na fila…Acho que o cheiro de loló bateu mais forte em minhas narinas do que o cheiro de maconha. Antes da banda principal subir no Palco Music, rolava o jingle do festival e vez por outra, rolava a Smell Like Teen Spirit do Nirvana e galera ia ao delírio. Admitamos amigos, o Cobain mandou bem nessa! Ah, anos 90 danados pra não passar!
Era uma época que não existia esse lance de apartação entre os fãs, o famigerado Front Stage. Queria ver sua banda preferida de perto? Então chegue cedo e se agarre à grade mais próxima do palco, espere bastante e depois é só curtir. Foi assim que toquei no braço do Samuel Rosa (ô besteira), vi o Dado Villa-Lobos, a Cássia Eller leve e solta no palco. Ficar na grade era uma verdadeira prova de resistência, era o espaço mais disputado do festival. Tirou o pé do lugar, dançou! O cansaço era compensado com a melhor visão do show, acreditávamos assim e nem ligávamos para o empurra-empurra.
No primeiro dia, a empolgação era tamanha que assisti, cantei e aplaudi o show da Ana Carolina (por que, meu Deus?). O show d’O Surto não vi nem o começo porque achava um saco o seu grande sucesso da época, nem sua participação no Rock in Rio em janeiro de 2001 era credencial para me convencer de que precisava ver aquele show. Fui passear. Quando rolou o Cidade Negra, tava tão longe do palco que quando cheguei, o show já tava acabando. Ki Abelha, ok. Hit atrás de hit, Paula Toller naquela animação (isto é uma ironia), com direito a sentar num banquinho e olha que não era show acústico. Skank e seu show a base de grandes sucessos sempre anima público de festival. E o show d’O Rappa é aquele lance catártico: músicas, protesto, pulos, grafite, Falcão incansável e a lembrança e a torcida pela recuperação do baterista-e-mente da banda Marcelo Yuka, que fora baleado naquele ano num assalto ocorrido no Rio de Janeiro.
Segundo dia. Curti o show do Gabriel, o pensador, graças ao seu disco anterior, o menos agressivo e mais pop “Quebra-cabeça”, o rapper fazia sucesso de público e crítica. Não estava interessado nos shows da Tribo de Jah e Engenheiros, mas fiquei bastante admirado com a grande presença do público-fã do Humberto Gessinger e músicos que o acompanham.
O meu maior interesse desse dia era nos três últimos shows da noite: Frejat e amigos, Cássia Eller e Nenhum de Nós. Meus amigos, vocês não sabem o que é ficar pregado numa grade para ver três shows em seguida (foram quase quatro horas seguidas no mesmo lugar, sem tomar água ou ir ao banheiro pelo risco de perder aquele pedaço de chão perto do palco e segurando na grade – que loucura rapaz!), Frejat lançava seu primeiro disco solo e para acompanhá-lo foram convidados Bi e Barone do Paralamas, a banda estava parada por conta do acidente aéreo sofrido por Herbert Vianna em fevereiro daquele ano, além do guitarrista Dado Villa-Lobos da Legião, o “bichim” tentou cantar uma música de sua banda, “Geração Coca-cola” não se saiu bem, mas valeu pela intenção de homenagear o Renato Russo. O Nenhum de Nós voltava a capital cearense depois de muito tempo, trazia um novo CD, com duas músicas tocando na rádio e tome sucessos do passado para o deleite dos fãs fiéis dos músicos. O público foi surpreendido positivamente com a energia da banda tocando suas músicas com um grande entusiasmo mesmo tocando já no final da noite; Cássia Eller, no melhor momento de sua carreira, nos presenteou com um show fantástico. Muita a vontade em sua calça xadrez frouxa, camisa regata preta, com cabelo bem curtinho e pintado de vermelho. Transbordava felicidade no palco, comunicativa com o público, banda bem ensaiada, praticamente todas as músicas do acústico MTV foram tocadas com direito a participação de seu parceiro, o ainda titã Nando Reis cantando “O segundo sol” ao lado da amiga…E assim, foi o seu último show em Fortaleza, seu primeiro e único Ceará Music. Quem poderia imaginar que dois meses depois, Cássia Eller sairia de cena e deixaria um vazio enorme na música brasileira. Obrigado pelo nosso último encontro, Cássia!
Sábado. Neste dia, ficou provado que uma música bem escolhida do CD e bem trabalhada nas rádios pode levar um grande público a cantá-la sem necessariamente saber quem são os membros da banda que é dona dessa música. Foi assim, Catedral e sua “Eu amo mais você” e o público do Ceará Music, numa espantosa sintonia. Tinha um misto de novidade da banda pós-gospel com um Renato Russo com versos menos inspirados. Essa fez sucesso que encheu o saco! (com todo respeito aos fãs do grupo) E o resto do show? Não me lembro. Fernanda Abreu? Também não me lembro! Tihuana encerrando a noite, pior! Quer dizer, lembro-me da “Eu vi duendes” (ou será que ouvi ou vi algo na minha ressaca de sono?) O Titãs, depois de dois acústicos e uma coletânea de sucessos dos outros, deram as caras com um álbum com músicas inéditas. Era o primeiro show da turnê “A melhor banda …”, no início do show rolou um texto lido por Paulo Miklos em homenagem ao amigo Marcelo Fromer que havia morrido em junho daquele ano. Teve Pato Fu – que na época, foi escolhida pela revista Time como uma das bandas mais importantes do mundo – trazia o seu “Ruído Rosa” com a fantasmagórica “Eu” e sua versão de “Ando Meio Desligado” dos Mutantes. Show bem divertido que vinha na esteira dos sucessos do álbum anterior, “Isopor”. Se hoje, você sente vontade de dar um abraço bem forte na Fernanda Takai quando ela começa a falar ou cantar. Imagine em 2001! Dava vontade de apertá-la!
E a banda que foi uma das últimas atrações confirmada no festival, foi a mais surpreendente. Biquini Cavadão e Ceará Music, amor à primeira apresentação e ficou difícil dissociar isso nos anos seguintes. Lembro-me de chegar cedo ao evento e ver a banda no cais do hotel dando entrevista para uma televisão, eles estavam muito receptivos com o público que passava, bom sinal! E na hora do show, aconteceu exatamente aquilo que ninguém esperava, mas que já havia ocorrido na apresentação da banda no Rock in Rio em janeiro e que praticamente ocorreria nas apresentações do grupo nas edições seguintes do festival: Bruno Gouveia alucinado, cantando os maiores sucessos da banda, tirando fotos de si e da plateia com a câmera de um fã, jogando água no público, descendo para ficar perto da galera, sacudindo os braços como se fosse um maestro, o playback da participação do Renato Russo, a presença do ex-baixista do Los Hermanos e aquele fã meticulosamente tirado do meio do público para cantar “No mundo da Lua”. Neste caso, o escolhido sempre era o Roderic Szasz, professor de Literatura, fã fortalezense que se comunicava com a banda desde o tempo da Caixa Postal. Ninguém nem se lembrava quando foi a última apresentação da banda em Fortaleza, mas com aquele show, as pessoas saberiam quando seriam o próximo. Depois veio um show que rolou até o sol da segunda-feira aparecer, um DVD gravado no festival e outras apresentações sem a mesma novidade, mas com os mesmos fãs arrebatados naquela noite de 13 de outubro. E o último dia foi com a dupla Sandy e Júnior. Não sei o que rolou nesse dia, quem foi, que horas terminou e quem era “Sandyjunio”.
E o resto se perdeu na memória, virou história, ficou na retina e nos corações de quem foi. Estimativas da época apontam que 120.000 pessoas estiveram lá. Foram 120 mil corações, 120 mil cabeças, 120 mil histórias para contar. Nas onze edições seguintes, tivemos o Brazuca, quatro dias de festival, outras atrações, velhas atrações, parceria com o Mucuripe Club, bandas internacionais. Quando o Ceará Music chegou ao fim (a última edição foi em 2012), não passava de um festival de música eletrônica. Mas, não importa quantas edições o festival iria durar ou como iria acabar, a primeira edição – aquela que podemos dizer “foi foda, mermão!” – trouxe todo o frescor da novidade para terras alencarinas que mansamente saudavam o novo milênio. Confesso que me enchi mais de música do que de esperança. E isso era bom. Não éramos felizes, estávamos felizes e sabíamos.
Ao me encontrar com o jingle-chiclete do festival, depois de mais de quinze anos, tenho que concordar com ele: o Ceará foi uma grande música que nos fez sonhar, realizar e cantar: TAVA NESSA! E a hora de pegar o primeiro trem da manhã de volta para casa já passou.
Um ser urbano que ama sua cidade e sonha diariamente com dias melhores para o mundo, nas horas vagas é professor de História. Não perdeu a mania de anotar todo filme que assistiu. Entre Histórias, filmes, músicas, realidade e sonhos; um negro em movimento que deseja fugir com o primeiro circo que aparecer na porta de sua casa.