Rita Lee e sua mordida em mim

 

 

Nos percursos da minha infância a presença de figuras nacionais nas músicas que tocavam no convívio com minha mãe era constante. Fosse no carro, na coleção de CD’s, que ela fazia questão de ter sempre disponível no cofre, ou nas vezes em que ligava o aparelho de som ou um karaokê e passávamos a tarde cantando. Duas músicas em que sempre arrasei no falsete foram “Asa Morena” de Zizi Possi, em que eu insistia em dizer “me alevia a dor”, e “Doce Vampiro” de Rita Lee.
Acho que meu contato sempre foi restrito à vida dessa mulher maravilhosa, o único conhecimento que tinha dela era por “a mulher de cabelos ruivos” das músicas “Mamãe Natureza” ou “alô, alô marciano”…O que de certa forma é uma ironia pois sempre escutei as piadinhas de pessoas que usavam ela para brincar com o meu irmão, que se chama Marciano.
Seja por falta de um interesse por música nacional na adolescência (oh, the american dream!) ou por simples esquecimento, a senhorinha ruiva nunca deixou de ser um fascínio pra mim. Depois de tanto tempo sem ter contato, vim ter uma aproximação do seu trabalho através do Storynhas (2013) em parceria com Laerte e comprando os vinis do Flerte Fatal (1987) e Rita Lee (1979), os escutando sempre que tinha um espaço pra abrir a vitrola.
Eis que chega 2016 e a notícia de que iria sair uma autobiografia dela! O momento era propício. Já havia escutado muita coisa dela, desde a sua participação na banda Os mutantes até músicas soltas de sua carreira, sem contar em todos os sucessos da ruiva que eu havia escutado na infância. E foi junto com o lançamento do livro que resolvi mergulhar na sua trip.
Logo no começo do livro somos guiados por uma forma de narrar muito própria de alguém que já viajou muito em LSD e já viu Ovnis sóbria. De uma mulher que perdeu a virgindade com 6 anos de idade por uma chave de fenda e que, mesmo o livro contendo um trecho do tipo, conduz sua narrativa sem deixar que situações tão absurdas transformassem o relato em algo triste. Pelo contrário, o livro proporciona o conhecimento de uma pessoa que lidou com situações ruins da vida com a mesma leveza com que fala gírias ou compõe.
Crescida na casa de Charles, seu pai e único homem da casa, cercada por um “harém”, nome carinhoso que dá ao grupo de mulheres que moravam consigo, ela nos fala de sua infância em São Paulo, da vizinhança, família, referências da construção de sua identidade e sobre os contatos que teve com grandes nomes da música brasileira.
Somos capazes de ter um pouco de noção sobre como foi ser artista num brasil em tempo de ditadura mas a história em si não assume um caráter político ou histórico, como acontece na biografia Renato Russo – Filho da Revolução, justamente por se tratar do conjunto de memórias da ruivinha.
Como ela não podia confiar totalmente no que lembrava, o livro contém uma supervisão feita por Gui Samora, maior fã e colecionador de Rita, e que aparece para corrigir datas e dados históricos do livro através de balõezinhos de fala do fantasma phantom. Quem mais pensaria em ter um fantasminha como substituto de nota de rodapé?
O livro contém quatro anexos de fotos e chegar em cada um deles é um registro de quão rápido ela consegue nos guiar por sua vida se utilizando de sua maneira de ver as coisas. As críticas colocadas nele são sutis e marcadas por uma mulher irônica e inteligente, que sabe criticar a si e os outros. Como num trecho em que fala sobre a banda que fez parte:
“Os Mutantes nunca foram vendedores de disco nem frequentadores das paradas de sucesso em rádios. Éramos apreciados por nossa esquisitice visual e sonora. Hoje somos considerados “cult”, mas na época ganhamos o apelido brega de “os the brasiliãn bítous”(…), para orgulho dozmano e um certo constrangimento meu, afinal, ser fã dos Beatles não significava querer ser os Beatles”
Ainda nem terminei o livro e já quis escrever por estar pra lá de marrakech, ler sobre artistas é se inspirar constantemente. Se você, por ventura, ler esse livro saiba que no momento que escrevi esse texto havia parado na parte “A rainha está morta. Viva a Rainha!”. Ler sua autobiografia é como estar conversando e curtindo um beque. E chega a ser comparável ao próprio beque. Onde sabe-se que se pode rir, às vezes até chorar tendo a certeza que, estando bem ou mal, vai ser uma viagem. Amém Rita Lee Jones.