Lembranças remendadas de Renato Russo (Lado A)

 

– LEIA NO VOLUME MÁXIMO –
“Qual é teu nome, qual teu signo? (…) Qual teu arcano, tua pedra preciosa – acho tocante acreditares nisso”
 
I. “Tenho mais ou menos 30 anos, sou do signo de áries, eu nasci no Rio de Janeiro. Eu gosto da Billie Holiday e dos Rolling Stones, eu gosto de beber pra caramba, de vez em quando, também gosto de milk-shake, eu gosto de meninas, mas eu também gosto de meninos. Todo mundo diz que sou meio louco. Eu sou cantor numa banda de rock and roll, eu sou letrista e algumas pessoas dizem que sou poeta.” (Renato Russo falando de si em 1990)
“Andando nas ruas/ Pensei que podia ouvir/Alguém me chamando/ Dizendo o meu nome” 

 

II. Onze de outubro de 1996. Uma sexta-feira ensolarada. Quase hora do almoço e a imprensa noticiava a morte do vocalista da banda Legião Urbana, Renato Manfredini Júnior, o Renato Russo. Numa época que a internet não possuía a importância ou abrangência que se tem hoje, tivemos que esperar as notícias do Jornal Hoje e mais tarde, do Jornal Nacional (para os mais sortudos que possuíam sinal UHF, a MTV reprisou várias participações da Legião na emissora) sobre a morte do vocalista. Na cabeça desse adolescente que vos escreve, havia um monte de sentimentos relacionados a perder alguém de tão presente na sua vida e de suas irmãs.

 

“Não vá embora/ Fique um pouco mais/ Ninguém sabe fazer/ O que você me faz” 

 

III. Desde sempre, as músicas da Legião Urbana tocavam em minha casa. Vinham das rádios, dos LPs, das fitas cassetes, dos CDs e das escassas participações televisivas da trupe de Renato. Não era a voz de um irmão mais velho, era mais um parente distante que nos visitava e que sempre nos deixava palavras de amor, de indignação, de reflexão, de calma. Não sei se minhas irmãs choraram com a morte daquele barbudo de voz inconfundível. Por alguma razão, não chorei. Mas sentia que ele iria fazer uma falta a mim e minhas irmãs.

 

“Quero viver minha vida em paz. Quero um milhão de amigos. Quero irmãos e irmãs”

 

IV. Com o passar dos anos, as músicas de Renato não saíram da trilha sonora de minha vida (e haja luaus, festinhas, calouradas com bandas covers…), outros CDs foram lançados (entre “novidades” e trabalhos com proposta questionável que a gravadora – EMI – sabia que faturaria). Foi-se o adolescente, o jovem passou apressado, o adulto chegou sem saber pra onde ia e as letras e as melodias com a marca do líder da Legião Urbana continuaram intactas.

 

“Eu continuo aqui com meu trabalho e meus amigos/ E me lembro de você em dias assim …”

 

V. O tempo passou e mostrou toda a grandeza daquele artista que era, ao mesmo tempo, cantor, letrista, poeta, gênio, ídolo pop-messiânico. O trovador solitário tornou-se alguém que não estava só à frente de seu tempo, ele dialogava com seu tempo. Um verdadeiro líder de uma banda de rock and roll. E como todo rock star (e ainda por cima, ariano – a ferro e fogo), havia os excessos.

“ … Um dia de chuva um dia de sol/ E o que sinto não sei dizer”

 

VI. Ao mesmo tempo em que ele era arrogante, agressivo, imprevisível (seus críticos poderiam lhe acusar de chato, por não perder a oportunidade de dar conselhos a seus fãs, entre uma música e outra); Renato era muito afetuoso, carente, tímido e aprendeu a conviver com a solidão e a depressão. Mas nada disso tira a sua importância para várias gerações, falando de coisas cada vez mais atuais. Quer uma prova? Pegue a canção “Perfeição” (produzida em 1993) e veja se ela não está sob medida para o nosso 2016. E provavelmente continuará sob medida pros anos que se seguirem.

 

 

“Quero me encontrar mas não sei onde estou (…) Tenho quase certeza que eu/ Não sou daqui”

 

VII. Outubro de 2016. Passados 20 anos que um dos maiores ídolos de uma geração se foi, me sinto na obrigação de escrever algo em sua homenagem. Mas, o que? Tanta coisa saiu e ainda vai sair sobre Renato Russo. Com certeza, serão textos e mais textos, muito bem escritos por sinal, falando de sua infância sofrida, sobre o Aborto Elétrico (primeira banda de RR), o estouro da Legião, o incidente em Brasília, seus shows cada vez mais raros, sua orientação sexual, sua relação com as drogas, a AIDS em sua vida, sua carreira solo, sua morte precoce, bem como o legado deixado pelo artista, ou até mesmo traçar críticas sobre a pessoa do artista e seus excessos (pô! Eu já falei, o cara era um rock star!). Ainda tem o lance de falar detalhadamente sobre cada CD para exaltar a tão conhecida genialidade do ídolo. Acho que não me sairei bem escrevendo sobre qualquer coisa citada acima.
 
“Eu tenho um coração/ Eu tenho ideias/ Eu gosto de cinema/ E de coisas naturais”

 

VIII. Então vou partir para o mais fácil: fazer uma pequena lista das melhores músicas da Legião Urbana, depois faço um comentário sobre cada uma delas e indico qual a melhor música feita por Renato/Legião. Simples assim, né? O intuito será bem fácil. Primeiro, como não sou crítico musical (gosto demais de música para ser um), teria muita dificuldade em criar uma distância entre as músicas da Renato/Legião e a minha própria vida, mas cairia no erro de exaltar a obra do ídolo por mera questão pessoal. Segundo, fazer algo muito pessoal, não deixa de ser mais fácil e bem mais sincero. Então, se é pra ser sincero, tira o “a melhor música feita por Renato/ Legião” supracitado e coloque “qual a minha música favorita”. Agora sim!

 

IX. A verdade é que minha música favorita do Renato Russo não existe. Se existisse, teria que ser uma mistura. Faria uma colagem de tudo que representasse a obra do artista. Poderia ser uma letra politizada (como o primeiro LP – “sou brasileiro errado/ Vivendo em separado/ contado os vencidos de todos os lados”) com a melodia bem amorosa (como o LP Dois – “Quem um dia irá dizer que não existe razão para as coisas feitas pelo coração” ).
X. Porém, ela poderia conter aquela ira que explode no terceiro LP (“E todos vão fingindo viver decentemente/ Só que eu não pretendo ser decadente não”), ao mesmo tempo em que atraísse quem a ouvisse como se estivesse num culto religioso (como no As Quatro Estações – “quando estou contigo estou em paz/ Quando não estás aqui, meu espírito se perde, voa longe”).
XI. E se a música tivesse uma pegada mais sombria como o “V” (“meu joelho dói/ E não há nada a fazer agora”) ou mais deprimida (como A Tempestade – “Quando não compaixão ou mesmo um jeito de ajuda/ O que pensar da vida e daquele que sabemos que amamos”)?

XII. Acho que tudo bem, desde que ao seu término, a canção nos despertasse um desejo de reflexão (O Descobrimento do Brasil possui esse caráter reflexivo – “Quando você deixou de me amar/ Aprendi a perdoar e a pedir perdão”) e de redenção (como todas as despedidas que permeiam o A Outra Estação – “Me trancam na gaiola/ Mas um dia eu consigo resistir/ E vou pelo caminho mais bonito”).

XIII. Seria uma música longa e econômica no refrão. E os versos? Vixe! Acho que teria que ter “♪ Sou um animal sentimental, me apego fácil ao que desperta o meu desejo ♫” com “♫ festa estranha, com gente esquisita ♫”. Teria que juntar “♫ sexo verbal não faz meu estilo ♫” com “♫ eu quis o perigo e até sangrei sozinho ♪”. Unir “♫ viver é foda. Morrer é difícil ♪” com “♫ É tão estranho/ os bons morrem jovens ♪”.
XIV. A única coisa que não abriria mão nessa música utópica seria aquele final que aparece no final de Metal Contra as Nuvens: “♪E nossa história não estará pelo avesso/ Assim, sem final feliz. Teremos coisas bonitas pra contar. E até lá, vamos viver/ Temos muito ainda por fazer/ Não olhe pra trás/ Apenas começamos. O mundo começa agora. Apenas começamos ♫”. A faixa de 11:27, em seu minuto final, nos revela os últimos versos de uma delicadeza e de um otimismo imensuráveis, cheios de esperança por tempos melhores e a concretização de uma vitória (de quem? De qualquer que enfrente um dragão)

XV. E tudo não passa de exercício mental, mas uma certeza fica: por mais que se tente criar características ou rótulos sobre as músicas de Renato Russo, sua obra é imprevisível e atemporal. “Perfeição” ou “1965 (Duas Tribos)” entrariam tranquilamente no terceiro disco. “O mundo anda complicado” parece que foi tirada do segundo álbum ou que “Por enquanto” foi feita para configurar entre as faixas do último álbum da banda. “Já que também podemos celebrar/ A estupidez de quem cantou essa canção”.

Disclaimer: O lado B desse texto, juntamente com a lista de músicas favoritas do Luca, será publicado na segunda-feira.