Aristóteles e Dante Descobrem os Segredos do Universo (e minha própria sexualidade)

Meu primeiro contato com Aristóteles e Dante descobrem os segredos do universo surgiu durante uma das minhas sessões diárias de YouTube que costumava fazer aos 17 anos. Acompanhava alguns canais estrangeiros que falavam sobre livros, e em um desses vídeos, lá estava ele. Com uma capa maravilhosa, acompanhada de uma review entusiasmada, me fizeram pensar: preciso desse livro o quanto antes. Afinal, estava bem dentro da minha área: um romance sobre amizade adolescente E sexualidade. Se isso não era tudo o que eu procurava em um livro na época, eu não sei o que é.
O grande lance é que tão rápido que me empolgo com as coisas, perco o interesse. E assim foi. Até a Seguinte, o selo jovem da Companhia das Letras, anunciar o lançamento da tradução aqui no Brasil, e eu ter recebido uma cópia avançada para lê-lo, quando tinha um outro blog onde resenhava alguns livros. Situação propícia para ler, pois parecia que tudo apontava para que eu fosse ficar apaixonado por ele, e com um grande potencial de tornar-se meu favorito.
No livro, Aristóteles — ou Ari — é um adolescente soturno de família latina, sem muitos amigos, sem muitos interesses, que vive uma angústia existencial que nem ele mesmo consegue entender. Ele vai à piscina comunitária para passar o tempo, mas não sabe nadar, até que Dante, um outro garoto muito alegre e tranquilo, se oferece para ensina-lo. Em pouco tempo, os dois viram melhores amigos, e o livro todo — narrado por Ari — é sobre o desenvolvimento dessa relação entre os dois, ao mesmo tempo em que ambos têm que lidar com as descobertas da adolescência, com seus conflitos em relação à família, o mundo, e seus próprios conflitos internos. Dá pra entender o apelo do livro logo na sinopse.
O que aconteceu, ao contrário de começar a leitura, foi que eu comecei a fugir deliberadamente do livro. Fugir no sentido mais literal da palavra. Comecei a ignorar a sua existência na minha estante, quando o carregava na minha mochila — com aquela falsa esperança de que uma hora eu tomaria coragem para sentar e lê-lo de uma vez —, e durante meu tempo livre, quando pensava em qualquer desculpa para não dar início a leitura. Nem quando fora lançado de vez e os blogs e canais explodiram de elogios para o livro, nem quando meus amigos mais próximos começaram a falar dele para mim, eu dei meu braço a torcer. Muito pelo contrário: quanto mais ouvia falar dele, menos queria lê-lo.
E assim seguiu, até que três anos depois, em setembro de 2016, decido que finalmente é hora de enfrentar esse livro que me assustava por algum motivo ainda desconhecido para mim. E, honestamente? Nunca fez tanto sentido eu ter demorado tanto para ler esse livro. Vou explicar o porquê.
Vamos deixar uma coisa clara para uma contextualização: eu era um babaca. E com “babaca” quero dizer que cometia algumas atitudes babacas com uma certa frequência, como todo adolescente comum — especialmente sendo um adolescente gay que se acha muito esclarecido, só que não. Vamos dizer que minha sexualidade, e todo o meu background de uma família completamente religiosa, e toda uma vida ouvindo pessoas me julgando sem ao menos me conhecer, e sem eu nem ser assumido, me tornaram uma pessoa cautelosa. Parte dessa cautela se dava em mascarar minha própria sexualidade em algum nível, com piadas machistas, palavras ambíguas e uma total abstenção em certos momentos em que questões sobre orientação sexual e sexualidade eram levantadas em redes sociais e em outros locais de debate.
Então eu, que já havia entendido qual era minha sexualidade, mas não tinha coragem o suficiente para me assumir para o mundo de forma concreta, estava com o dever de resenhar um dos primeiros livros young adult com clara temática LGBT que recebem grande destaque no mercado editorial brasileiro. Gosto de pensar que subconscientemente eu sabia que não conseguiria fazer uma resenha sobre esse livro sem me expor, sem falar da minha própria orientação sexual, e por isso eu hesitei tanto, por tanto tempo, em resenhar esse livro. Na época, meus pais não sabiam da minha orientação sexual, e eu estava na vitrine do “será que ele é?” para outras n pessoas que me conheciam. Ter essa consciência, de onde eu estava naquele momento, e ter aquela sensação agoniante de que estavam apenas esperando qualquer deslize meu para que pudessem apontar seus dedos na minha cara, só aumentavam minha cautela porque, no fim das contas, não sabia nem como meus pais iriam aceitar, imagine todas as pessoas que me conheciam pelo blog, pela internet. Eu já estava esperando ser julgado por todos. Sei que esse é um pensamento muito egocêntrico, mas dê um desconto. A paranoia do armário é real.
Agora escrevo esse texto, duas semanas depois de ter lido. Durante essas duas semanas eu pensei sobre como esse livro me afetou depois da leitura, e sobre todo o tempo que levei para lê-lo de fato. Um livro brilhantemente escrito, com uma sensibilidade tão palpável que você consegue entender com clareza as questões de cada personagem e como essas tensões entre eles vão sendo construídas em um ritmo certo. O leitor realmente sofre com os personagens. O livro se desenvolve durante alguns anos da vida dos dois, e como o relacionamento de Ari e Dante muda com o tempo. Muitas sutilezas acabam sendo trabalhadas de uma maneira tão simples, mas ao mesmo tempo tão bonita, que é impossível não se deixar cativar pela narrativa. A própria estrutura do livro, desenvolvido em divisão de partes com capítulos curtíssimos — na maior parte do livro — contribui para esse desenvolvimento dos acontecimentos dentro da história, e como a voz cheia de angústia e um tanto verborrágica de Aristóteles se imprime nessa narrativa. É realmente de uma delicadeza absurda.
Mas, para além de ser tocado pela forma como o livro foi desenvolvido, fui tocado pela própria história. Aristóteles é, sozinho, um garoto carregado de pré-conceitos vindos da sua compreensão do que é ser um garoto, do que é ser um garoto latino, e que tenta ao máximo ser invisível e passar despercebido pelo mundo. Ele não sabe lidar consigo mesmo, com suas questões familiares, e nem com o afeto enorme que sente pelo seu melhor amigo. Ele compreende muito bem como o mundo é, e como esse afeto pode ser errado em algum nível. Ele carrega sua própria cautela. E toda essa jornada que vive durante todos esses anos é para que, no fim, ele se liberte de todos esses pré-conceitos e consiga se descobrir, entender o mundo ao seu redor, suas necessidades (estou fazendo um esforço tremendo para não dar spoiler, acredite), até que consiga viver da forma que quer.
Sei que se tivesse lido o livro naquela época, eu teria aproveitado a leitura em um nível considerável. Me empolgaria muito com a história do mesmo jeito que me empolguei agora, me emocionaria do mesmo jeito, e torceria pelos personagens do mesmo jeito. Talvez até fosse tocado da mesma maneira, pelas mesmas coisas. A grande diferença é que, lendo agora, com vinte anos de idade, três anos após ter recebido esse livro, ele me proporcionou uma experiência que eu nunca imaginei ter, que é a experiência de rever meu passado, com todos os erros que cometi, e me ver agora, onde estou, e o quanto caminhei e cresci desde então. Ter a oportunidade de me descobrir, assim como Ari, de me entender como um jovem gay perante a sociedade, e ter a oportunidade de me perdoar por não ter lido esse livro e o resenhado naquela época, e por ter sido tão duro comigo mesmo por medo do que pessoas que eu nem conhecia iriam pensar de mim. Ter noção de quem eu sou, e do quão importante é se expor dessa forma, para que outros adolescentes não precisem sentir essa hesitação em ser quem são, e não sentirem medo de declarar publicamente quem são.
Para além de qualquer problema que o livro venha a ter — porque nada é completamente perfeito —, “Aristóteles e Dante descobrem os segredos do universo” acabou sendo uma das leituras mais transformadoras de toda a minha vida como leitor. Já penso nos personagens com carinho, e olho para mim mesmo com olhos menos duros por causa dele. Nunca fui tão grato por ter procrastinado uma leitura.
Para além de mim, Aristóteles e Dante é um livro importante, lançado em um momento muito importante, e que ainda vai ser relevante por muito, muito tempo.
Título Original: Aristotles and Dante discover the secrets of the universeEditora: Seguinte
Autor: Benjamin Alire Sáenz
Tradução: Clemente Pereira
Nº de Páginas: 392
Sinopse: Dante sabe nadar. Ari não. Dante é articulado e confiante. Ari tem dificuldade com as palavras e duvida de si mesmo. Dante é apaixonado por poesia e arte. Ari se perde em pensamentos sobre seu irmão mais velho, que está na prisão.
Um garoto como Dante, com um jeito tão único de ver o mundo, deveria ser a última pessoa capaz de romper as barreiras que Ari construiu em volta de si. Mas quando os dois se conhecem, logo surge uma forte ligação. Eles compartilham livros, pensamentos, sonhos, risadas – e começam a redefinir seus próprios mundos. Assim, descobrem que o amor e a amizade talvez sejam a chave para desvendar os segredos do Universo.