A ideia aqui é dar um chega pra lá em alguns preconceitos e encarar Toy Story com a mesma seriedade com que se encara Shakespeare. Tá bom, talvez nem tanta seriedade, mas vamos pelo menos dar uma chance.
Os primeiro quinze segundos já entregam o mote do filme. O que, na realidade, não faz dele nada simplista. Neles vemos a transição entre o fundo azul do logo da Disney para um tema que, no seu cerne, já contém todo o enredo da película, as nuvens. Mas aí você me pergunta: “E daí, qual é a das nuvens”? Bem, vamos por partes. Em primeiro lugar elas são uma espécie de resumo visual da narrativa, na medida em que expressam um sentimento de indefinição, de movimento e de transição. Isso é bem difícil de você engolir se não estiver com a cabeça aberta o bastante, mas, dito de um modo bem raso, esta sensação relaciona-se com a infância, por isso mesmo as nuvens que nos são apresentadas não são as do céu, mas do papel de parede do quarto de Andy. Além disso, estas nuvens são também uma metáfora para a própria modernidade (ou para um sentimento de efemeridade relacionado a ela). Este período em que, como disse Marx, “tudo que é sólido desmancha no ar”. Por isso, arrisco dizer que o início entrega, de fato, toda a trama. Mas você tem de concordar comigo, o faz de um modo deliciosamente inteligente.
Ó aí as nuvenzinhas
Para os que não tiveram infância e não viram Toy Story naquele monstro de VHS que ficava em cima da TV, segue aqui a sinopse (eu ia fazer um resuminho, mas não creio que alguém nesse mundo não tenha realmente visto).
Como ia dizendo, a efemeridade e blá… O sentimento de transição da infância pra vida adulta é um tema muito recorrente nos filminhos que a gente vê todo santo dia na Sessão da Tarde. Mas Toy Story não fica por aí, senão seria simplesmente mais um sobre “amadurecer” e coisa e tal e em vez de brinquedos, teria um cachorro ou um macaco safado no título. A pegada aqui é mais punk, a modernidade (um elemento não presente nos outros acima) é metaforizada em diversos âmbitos que vão dos anseios infantis de um pivete remelento, até aspectos bem sutis como a questão da dificuldade de se manter uma amizade duradoura nesses tempos “acelerados”. A música tema de Woody é um exemplo inesquecível disso, escuta um pouquinho:
Esse foi o momento cuti cuti do post. Daqui pra frente o negócio é mais embaixo.
Tomemos a figura de Buzz Litghtyear, ele meio que é uma encarnação dos vícios do ideal moderno: Chega todo pintoso, perguntando pros nativos locais se já descobriram a fusão do cristal ou se ainda usam combustível fóssil, querendo impor a eles a novidade estarrecedora que é a sua visão de mundo… Aqui, a modernidade personificada é incapaz de não olhar para seus iguais (os bonecos), ou para qualquer outra coisa, sem fazer deles tábua rasa. Não há margem para admitir que aqueles “atrasados inferiores” possam, de fato, contribuir com alguma coisa para o entendimento da realidade, nisso nega-se veementemente o fato que deveria ser inegável e que o caubói Woody tenta reafirmar o tempo todo para seus colegas estarrecidos: O de que Buzz ligthyear é apenas um brinquedo.
A cena em que Lightyear “voa” de olhos vendados encerra o quadro. Aqui, tal como numa certa concepção de modernidade, a condição para a decolagem é cerrar o olhos a qualquer outro projeto concorrente, sobretudo, os projetos antigos. Portanto, em Toy Story, o mito do moderno até consegue dar seus pulos, mas, o faz como um burro que só anda pra frente pq lhe taparam a visão periférica.
Certo, bem ou mal, o fato é que ele voa (ou quase isso). E dinossauro, cão, cabeça de batata e cia. ficam todos boquiabertos com as luzes, a performance e as asas de plástico. É esta sutileza que o vaqueiro Woody não saca. A verdade é que não faz tanta diferença ser um legítimo patrulheiro do espaço, antes é bem mais significativo vender aquela “fantasia”, aquele projeto brilhante que te deixa um tanto confuso. Isto é bem da modernidade, já que ela mesma se fixa numa promessa que nunca se realiza, mas que pode sempre ser atualizada para um futuro mais distante. O Xerife de brinquedo quer o tempo todo rebater o mito com fatos, mas não é bem assim que as crenças funcionam…
No entanto, sabemos bem que esta é a única postura que cabe a Woody, afinal ele encarna, de uma vez só, o “velho” e a “ordem”, ou melhor, o “antigo regime”. É a ele que cabe o papel de realçar os absurdos do projeto moderno, as incoerências que, apesar de óbvias, todos se recusam a ver. Nesse sentido, Woody é um típico conservador, talvez até um reacionário.
Vou ficando por aqui, se gostarem faço uma segunda parte cruzando Toy Story, Lacan e Hannah Arendt.
E pra comemorar o dia das crianças, fiquem com esse vídeo amador live action de Toy Story que achei enquanto fazia as pesquisas. É fantástico.
Por Plauto Daniel
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