Nomadland – Uma jornada rumo ao inóspito desconhecido

Nômades são pessoas que não possuem residência fixa. Esses indivíduos que mudam constantemente de um lugar para o outro acabam tendo uma vida bastante isolada do resto da população comum que ocupa de forma fixa o meio rural e urbano. Esse estilo de vida é algo comum nos EUA, principalmente no Meio Oeste, onde as pessoas tendem a obter trailers e vans para partirem em jornadas desbravando terras desconhecidas, fazendo da estrada seu próprio lar. É peculiar que após o comovente e ótimo Domando o Destino (The Rider, 2017), a diretora e escritora Chloe Zhao tenha escolhido exatamente contar a história deste povo, trazendo uma narrativa que percorre vários lugares e traz um retrato duro e triste de um EUA pouco mostrado em tela. 

A narrativa de Nomadland (2020) não tem nada muito elaborado, tudo aqui na verdade é muito simples, diga-se de passagem, mas é na força de sua história que o longa se mostra um drama forte e marcante. O filme conta a história de uma mulher, Fern (Frances McDormand), que após uma grande recessão sofrida pelos EUA causando uma onda de desempregos e perdas financeiras, sai em uma jornada pelo oeste americano em sua van, vivendo numa versão moderna do que seriam os nômades.

O roteiro escrito por Chloe Zhao foca não só na jornada de Fern, mas também neste mundo de pessoas com o mesmo estilo que ela, vivendo em comunidades que aproveitam a mão de obra temporária local, até conseguir dinheiro suficiente para continuarem suas próprias jornadas rumo ao próximo ponto de parada onde iniciam o ciclo novamente. A primeira metade de Nomadland é bastante eficaz em situar o expectador e dar familiaridade ao estilo de vida dessas pessoas, o tom da fotografia e estilo de filmagem escolhido por Zhao, dá ao longa um tom mais documental, quase como se a diretora estivesse colhendo diversos depoimentos dando mais autenticidade a esses personagens inicialmente desconhecidos, mas com muita história para contar em sua bagagem.

Este longa é gostoso de assistir, porque o roteiro consegue dar espaço para esses personagens mostrarem quem são, ao mesmo tempo que vai revelando aos poucos o passado deles e de sua protagonista e como ela chegou naquele ponto em que se encontra. A verdade é que Nomadland é mais profundo do que parece ao escancarar um lado mais triste e melancólico de um EUA frustrado por sonhos que não se concretizaram, sonhos que ainda estão em movimento e sonhos realizados, tudo isso mostrado de uma forma bastante honesta através desta comunidade nômade que se mostra ferida pelas consequências econômicas do país, mas que ainda assim encontra uns nos outros motivos para continuar buscando algum sentindo em suas vidas.

Existem três formas de enxergar Nomadland: a primeira é através dos olhos da diretora Chloe Zhao, que aqui se mostra sensível numa direção que não só consegue ser ampla com tomadas que mostram a imensidão vasta, fria e inóspita do Meio Oeste americano, ao mesmo tempo que é muito eficaz em privilegiar seus personagens em tomadas mais íntimas e tocantes. É incrível como a diretora consegue capturar num singelo olhar, toda uma emoção que ganha peso dramático sobre suas lentes. A segunda se encontra no protagonismo de Frances McDormand na pele de Fern. Aqui a atriz é simplesmente magnifica, numa atuação mais contida, mas que carrega todo um peso devido ao passado trágico de sua personagem, McDormand ao mesmo tempo se mostra fascinante, fazendo o público realmente embarcar em sua jornada tentando adivinhar e entender o porquê de ela ter escolhido uma vida tão solitária. 

A terceira forma é através da parte técnica do filme. Nomadland é uma experiência (assista com a melhor qualidade e maior tela possíveis) cinematográfica muito única, que tem não só na direção seu maior trunfo, mas no conjunto da obra, já que a fotografia magnífica, a trilha sonora sólida e a ótima edição transformam esse filme em algo a ser apreciado nos mínimos detalhes, tudo isso elevado por um roteiro que privilegia a jornada de seus personagens e faz uma análise singela do que é viver sem uma residência fixa, laços familiares, e ainda assim encontrar nos pequenos momentos e nos pequenos diálogos e conversas o conforto e a felicidade que preenche o senso de vazio.

O elenco coadjuvante é formado em sua maioria por desconhecidos que, ao que parece, estão contando suas experiências reais em relatos tocantes que pegam o público de uma maneira inesperada. São histórias, em sua maioria, de pessoas idosas que já viveram muito e agora encontraram nesta jornada solitária uma forma de seguir em frente num país que não sabe como encaixa-los mais em sociedade, fazendo com que essas pessoas encontrem maneiras alternativas de passar seus últimos anos de vida, moldando seus próprios destinos. 

Então, voltamos ao personagem de Fern, uma mulher que, mesmo convivendo com esta comunidade nômade, ainda se mostra sozinha vivendo sua própria jornada tendo que lidar com um luto do passado do seu jeito, seja através de trabalhos temporários usados para ocupar sua mente, ou problemas corriqueiros que surgem com sua casa sobre rodas, uma velha van que a leva de uma cidade a outra. Sua relação com outras amigas nômades é tocante e um alívio, é onde vemos a personagem com lampejos de felicidade, mas aqui o filme ganha mais camadas ao traçar um possível interesse romântico para a personagem na pele do solitário Dave vivido por David Strathairn (ótimo), em um dos romances mais interessantes da era moderna, concebido de uma forma sensível que apenas serve como parâmetro para entendermos ainda mais as motivações da personagem.

De uma forma geral, Nomadland é sobre pessoas e sua jornadas rumo ao desconhecido. É excelente como Zhao consegue humanizar e encontrar um certo lirismo na vida dos nômades modernos de uma forma tão honesta e emocionante, mostrando que este estilo de vida é sim uma forma de viver, mesmo que seja incompreendida pelo resto da sociedade, são pessoas que sofreram perdas econômicas e familiares, mas que encontraram nesta jornada, viajando pelas estradas, uma forma de viver e lidar com os próprios sofrimentos, por isso a personagem de Frances McDormand é tão simbólico, uma mulher que não consegue esquecer o passado, se recusa a fixar um lar e vê a estrada como um caminho para se reencontrar. Desta forma é impossível terminar este longa sem reavaliar tudo que nós somos e qual é o nosso objetivo na vida, afinal, mesmo convivendo coletivamente, nossa jornada pessoal é tão individual quanto a de um nômade moderno, seja para superar uma perda, seja para encontrar motivos para continuar a viver.


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