Lingua Franca – A potência do silêncio

Isabel Sandoval, esse é um nome merecedor de ficar para sempre nos livros de História sobre Cinema. Isabel Sandoval é uma mulher filipina e diretora de cinema. A primeira mulher trans com um filme no Festival de Veneza. Sua jornada como diretora não começou com o filme Lingua Franca (2019), ela já teve a experiência de dirigir outros longas, começando por Sañorita (2011), seguido por Aparisyon (2012). Seus filmes são bem únicos e abordam diferentes temáticas e visões e sua carreira vem dignamente recebendo um certo reconhecimento após o terceiro longa da diretora: Lingua Franca

Em meio ao governo Trump nos Estados Unidos e toda a caça a imigrantes ilegais tão reforçada pela administração, acompanhamos a vida de Olivia, que é uma imigrante filipina e também cuidadora de uma senhora idosa de origem russa. A personagem é interpretada pela própria diretora, que assina também o roteiro, a produção e a montagem do filme, e, como ela, também é uma mulher trans. Acompanhamos a personagem de Isabel Sandoval enquanto ela trabalha e economiza dinheiro para pagar o homem com quem vai se casar. Cada vez mais a personagem busca fugir do fantasma da deportação. 

Em seu roteiro, a história fala sobre muitas coisas e, diferentes de muitas obras, não o faz de forma gritante. Existe muito silêncio trazendo mais atenção para os problemas aprofundados e também àqueles não aprofundados. A própria diretora já mencionou em entrevistas sobre a importância das camadas e também da complexidade escrita, que é percebida pela mesma em suas histórias e em seus personagens. O filme não grita nada contra o governo, ele nos mostra a personagem imigrante em constante tensão e medo de ser descoberta.

Diferente de muitas outras obras protagonizadas por personagens trans, o filme não fala sobre aceitação, descoberta ou cirurgia. Temos no longa uma protagonista cuja trama não gira ao redor do fato dela ser trans, isso é apenas uma parte de sua identidade. O fantasma da deportação é o verdadeiro tema da obra, é o combustível responsável por mover o enredo e a personagem. Afinal, a negociação de um casamento com um homem americano está acontecendo exatamente porque ela precisa de seu visto e é a partir deste conflito onde podemos mergulhar mais na trama da personagem.

Passando pelo atual e ao mesmo tempo atemporal enredo sobre imigração, o filme é muito movido por seus personagens e seus conflitos – internos e externos. Apesar da protagonista ter seu próprio arco somos apresentados também ao neto da senhora de quem Olívia cuida. Alex (Eamon Farren) vive um personagem cheio de conflitos internos, com alcoolismo, com sua família, com o mundo em si. O personagem passa a morar com a avó e é introduzido à nossa protagonista, cuidadora da mesma, e há uma tensão romântica e sexual construída entre os dois. 

Ao longo do filme podemos conhecer também mais da relação da personagem principal com sua família, a quem a mesma consegue ajudar financeiramente de longe. As interações da personagem com sua mãe, mesmo acontecendo apenas por ligações telefônicas, são essenciais para a construção de todo o arco da personagem. Ali nos Estados Unidos ela pode conseguir dinheiro para ajudar a família, não estendida apenas à sua mãe, e por isso a deportação é um risco e tanto. Ivory Aquino interpreta uma amiga de Olivia, também transexual e das Filipinas, e a relação de amizade e companheirismo é presente em toda obra. 

Reverberando em vários níveis com o mundo atual e sendo capaz de dizer muito sem ser necessário gritar, Lingua Franca se consolida de forma particular como uma obra sensível. Seu enredo contém muitas nuances tratadas de forma bem original e também subjetiva, se permitindo ser potente e não prepotente. É inegável o fato de Isabel Sandoval ter deixado suas digitais ao longo da obra, especialmente reconhecendo o quanto dela acaba sendo carregado para o longa. Lingua Franca não é um filme para dizer o que é certo ou errado, mas sim uma obra para narrar uma realidade presente no mundo de uma forma não comumente narrada. 


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